terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Chove chuva, chove sem parar...


Ronald Corrêa

Nos meus tempos de menino, o cheiro do encontro da chuva com o asfalto quente era como um bálsamo que ora embalava as noite de sono, ora enchia de energia o corpo que se embrenhava meio aos pingos do céu à procura das biqueiras, espécie de cachoeiras criadas pelos telhados das casas da vizinhança.

A chuva cumpria uma dupla finalidade: alimentava na solidão do quarto o sono, muitas vezes furtivo, ou era o mote para reunir a tribo de ‘curumins’ que saudavam como verdadeiros índios, com desajeitados gritos e correria, o banho celestial.

Agora há pouco me veio uma dose de nostalgia desse tempo em que tudo isso me era permitido. Aqui, no apartamento envolto por um calor massacrante, senti aquele cheiro da infância invadindo sutilmente pelas janelas minha ‘sauna’ particular. Corri até o quarto e estendi a mão para alcançar um pouco dos tímidos pingos que ousavam cair próximo a mim. Para minha surpresa ao passar a vista pelos prédios à minha volta, percebi que não era o único que estava à janela contemplado o frescor daquela leve e fina chuva. Alguns outros moradores, uns apenas a observar, absortos, um ponto de fuga qualquer na imaginação, outros também com seus braços estendidos para aumentar o frescor, comungavam comigo daquele momento.

A concorrência era grande, porque nas TVs que eu conseguia avistar, como que em um nado sincronizado, era possível ver a simultaneidade das telas que exibiam em todas as salas o mesmo programa: um reality show da emissora mais poderosa do país!

Uma tribo formada por pouco mais de uma dúzia de agora ex-curumins saudavam o presente caído das estrelas, talvez lembrando tempos idos só despertos nesses momentos. Lá embaixo, dois adolescentes corriam fugindo dos pingos. Aqui em cima, alguns ‘envelhescentes’ com uma baita vontade de se jogar na chuva, correndo para a biqueira mais próxima, abrindo os braços com os rostos voltados para o céu, regando na memória instantes da mais feliz saudade.

E assim, não podendo tomar o banho, senão em pensamento, nos resta o consolo de que, pelo menos, o frescor e o aroma da chuva cumpra sua outra finalidade: alimentar na solidão do quarto, nossos sonos e nossos sonhos.

                                                                                             15.01.2013

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Felcidade(s)

                                                                                                                                      Ronald Corrêa
Tempos atrás, quando pensava que era possível procurar e encontrar resposta para toda e qualquer pergunta, eu imaginava que o objetivo maior de todo e qualquer indivíduo seria encontrar a felicidade. De lá pra cá talvez eu não tenha mudado tanto. Tirando o excesso de tecidos adiposos na região abdominal e alguns recalcitrantes fios de cabelos brancos que insistem em dar colorações à la Antonio Fagundes aos meus cabelos, continuo, sim, o mesmo e persisto em crer que a busca maior de qualquer ser humano é mesmo aquela que o conduz à felicidade. O problema que surge e que em muito dificulta aqueles que se aventuram nesta árdua caminhada é pensar que existe uma só felicidade.

Ok, sei perfeitamente que está parecendo que daqui pra frente vou elencar algumas dicas do tipo: como ser feliz em dez dias, ou o segredo para ser feliz, ou quem sabe ainda a chave da felicidade... Aos que assim pensaram sugiro cautela. Primeiro porque sou daqueles que odeia receitas de sucesso: odeio livros de auto-ajuda, sobretudo, porque só ajudam os seus autores! Segundo, é que o motivo que me levou a escrever esta pequena crônica foi um fato deveras insólito. Certo dia, num belo final de tarde no meu tradicional ônibus das 17:30h, me deparei com uma cena curiosa: um homem de meia idade, olhar meio espantando, barba por fazer e cabelo desgrenhado, sobe no ônibus com um pequeno pacote de papel, tipo sacola de supermercado. De dentro deste sobressaía a cabeça de um pequeno cãozinho.
Minha primeira reação foi conter o sorriso que só a muito custo pode ser abafado. O mesmo não posso dizer de meia dúzia de outros passageiros que se limitaram a voltar os rostos para as janelas e liberar em pequenas doses os risos. Passada a primeira impressão, notei que o cidadão lá com seu cachorrinho, fazia pouco caso do local onde estava e da reação dos que ali estavam. O que o preocupava mesmo era o bem estar do seu companheiro. Aquilo me fez ir longe.

Veio aos meus perturbados pensamentos que felicidade talvez seja uma palavra que só pode ser conjugada no singular por quem a sente e em momentos específicos. Àquele que dela fala, escreve ou que pretende compreendê-la, só poderá usá-la no plural. Melhor ainda: para tentar entender a felicidade é preciso considerar que ela é feita de pequenos momentos: pequenos tijolos nos quais se encontram pedaçinhos dela, e que ao serem somados lhe dão contornos maiores que, ainda assim, não passarão de uma felicidade efêmera. E é por isso que às vezes se torna tão complicado encontrar esta tão procurada e almejada senhora, ela a felicidade.
Viagens à parte, certa vez escrevi que somos em essência puro hedonismo. Do estóico faquir que decide por passar a vida sobre colchões de prego ao fanático religioso que se auto-flagela impiedosamente, somos todos inveterados hedonistas. Cada um, a sua forma e por caminhos próprios, procura a felicidade. Alguns irão encontrá-la em deus, outros na namorada, no amante, no sexo, na literatura, num lugar distante ou mesmo num simples sorriso.
Falando em sorriso, ele é um dos mais enigmáticos símbolos de felicidade. Muitos o consideram a expressão mais perceptível dela, sua exteriorização. Eu considero o sorriso não mais que uma trincheira que, ao mesmo tempo em que pode ser um ponto de ataque também o é de defesa. Ao ouvir Keane o meu sorriso triste é de felicidade, a mesma que sinto quando ouço o Paulinho Pedra Azul “cantar”, embora aqui o sorriso seja alegre.
Mas a felicidade vai além dos lábios esticados. Ela pode ser “clandestina” como a quis Clarice Lispector, pode ser “realista” como a descreveu Martha Medeiros, pode ser música como a cantou Caetano, pode mesmo ser tristeza como defende o Rubem Alves e pode ser solidão como tanto evocou o Fernando Pessoa.
E por falar nele, uma das coisas que me fez tornar fã incondicional do poeta da terra do bolinho de bacalhau é que ele dizia que nós temos a mania de criar mistérios onde eles não existem. Por isso também ouso dizer que não há mistério que torne a felicidade algo intangível. Pelo contrário, é na simplicidade que ela reside. O encontro com o prazer inebriante que nos é proporcionado pela felicidade pode está mais perto do que imaginamos, mas insistimos em procurá-la nos lugares mais distantes.
É preciso ser óbvio e considerar a única pista que temos: só a encontrará aquele que se dispor a fazer o seu próprio caminho. Fazer o próprio caminho é a grande dificuldade posto que fomos moldados a sempre seguir por trilhas já existentes. Fazer seu próprio caminho desperta o medo e o medo, por seu turno, nos faz sempre enxergarmos dez dificuldades à frente de uma singela e ofuscada possibilidade. E dessa forma tudo se torna mais dificil!
Ainda assim, se nao estiver muito fácil a procura, vale a pena pegar um pacote, por dentro dele um cachorrinho e sair por aí, dando volta de ônibus. Se não vier a felicidade, pelo menos sorrisos virão, e sorrisos são trincheiras da felicidade.
                                                                           Repostado em 20.11.12

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dissecando Bethânia


                                                                                         Ronald Corrêa


Não deixa de ser um processo ritualístico e, embora eu esteja mais para um cínico cético e cada vez mais distante do misticismo, é também um momento em que uma certa dose de mágica parece fluir. Tudo começa com o cauteloso contato com a superfície negra, delicada, viscosa, valiosa, do vinil que, ao ser retirado da capa que lhe protege, me faz vir a cabeça a imagem de um sol desvirginando a madrugada. Ali, sedentas de voz, escondem-se trilhas finas sobre as quais deito com extremo cuidado o braço do tocadisco.

De imediato começam a pipocar pequenos estalos, sinais do tempo, um ruído que parece chamar a atenção dos meus ouvidos para que não percam momento algum da audição que está por começar. Já iniciado o movimento giratório, com certa dificuldade ainda consigo ler, escrito em letras cor de prata que contrastam com o fundo azul marinho, o ano de 1978, que deixa patente a força e a atualidade das palavras ali gravadas e que lentamente começam a emanar tal qual um canto de sereia irresistível. Sereia Bethânia que com sua voz, misto de doçura e dureza, embala sonhos meus. Logo de início ela me mostra a boca molhada e ainda marcada pelo mais famoso ato de negação depois do de Pedro: “negue o seu amor, seu carinho, diga que você já me esqueceu...”

Roda o disco, roda viva, roda cheia de vida, qual nas calhas de roda que gira a entreter o coração, como sabiamente dizia Pessoa, seguem a criar vida os versos. As palavras já não mais pertencem àquela negra superfície, se transformam em seres com vida e vontade próprias. Inebriam pensamentos, distorcem as ideias, confundem, mexem, causam mal estar e depois se acomodam como se inocentes fossem.

O ritmo cadenciado e calmo, aos poucos ganha contornos diferentes e uma agressividade doce e sufocante, sem que de imediato se faça perceber, vai ganhando corpo à proporção que a agulha se aproxima do centro do disco, como que uma mão que se aproxima do peito para sentir o seu pulsar mais intenso. E o que era a mansidão de ‘ronda’ cede lugar ao desespero visceral de ‘explode coração’.

Que experiência fantástica essa que é a música capaz de nos oferecer. Maria Bethânia, como poucas, consegue causar essa sensação de instabilidade, dizendo ora “pai afasta de mim esse cálice” como que pedindo clemência e paz, para em seguida afirmar que quer “sentir a dor dessa manhã nascendo, rompendo, rasgando tomando meu corpo” num rasgo de insensatez que só a mais desvairada paixão é capaz de proporcionar.

Percebo então que o disco termina e de forma saudosista o movimento vai cessando lentamente, como uma chama que é obrigada a apagar independente de sua vontade; como o sono que insiste em me assaltar por mais que eu tente resistir. Refém dele, me resta um tênue lapso de força que ainda me permite puxar a tomada e desligar o som. Com os olhos a se cerrar vendo o esvair-se da noite pela janela, Bethânia mais uma vez canta baixinho nos meus ouvidos: “no meu céu a estrela guia se perdeu, a madrugada fria só me traz melancolia, sonho meu...” Durmo.


                                                                                           29.05.2012

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Comemore Maranhão, somos os primeiros no ENEM!


Ronald Corrêa

Não sei por que, mas já não me assusta, alarma ou surpreende quando vejo o Maranhão ser noticiado nacionalmente pelos seus prodigiosos feitos negativos. Alias, até sei o porque: tá mais que na cara os motivos que o conduziram a tais feitos. O mais recente foi o nosso brilhante resultado alcançando no Exame Nacional do Ensino Médio, vulgo ENEM: último colocado.
É uma triste realidade, disso não há do que discordar. Agora, se surpreender é algo que já foge às raias da sanidade. Um estado que trata educação como um mero detalhe, uma pasta a mais, um pesado fardo que recai sobre os ombros do poder público, não poderia esperar resultado diferente.
Mas seria injustiça culpar apenas o estado por todo esse insucesso. Se ainda estivesse nos bancos da academia, sob a pesada ditadura catequética esquerdista que lhe é tão comum, diria que a culpa é do sistema. Dado que a idade, e muito menos a consciência, não me permitem esses pueris devaneios, é melhor pôr os óculos da realidade para melhor entender quais os personagens que contribuem, cada um com sua devida parcela, para chegarmos a atual situação.
Dado que o ENEM é um exame voltado para o ensino médio, e sendo este de incumbência dos Estados, o governo estadual tem sim sua parcela de culpa. E ela fica clara quando se percebe o escasso número de escolas desse nível de ensino no interior do estado. O mesmo governo que usa helicóptero público para servir aos interesses particulares do pai da chefe do executivo é também o que não tem uma clara e coerente política de formação continuada de seus profissionais da educação. Só para não incorrer em delongas, para governo algum, educação pública de qualidade nunca foi prioridade.
Somemos ao descaso do poder público uma grande leva de professores que simplesmente ocupam o posto por conta do soldo do fim do mês. Sem a devida formação inicial (culpa do anacrônismo que assombra nossas universidades), fazendo pouco caso da formação em serviço e tendo a sala de aula como o mal necessário de cada dia, são profissionais que se consideram prontos e acabados, insuscetíveis de aprimoramento. Em geral, reclamam de desvalorização profissional (entenda-se baixos salários), recorrem a greves que quase sempre dão em nada, conturbando ainda mais os tortuosos e sacrificantes calendários escolares. Em contrapartida não se percebe claramente investimentos pessoais que justifiquem a valorização, por exemplo: quantos livros por ano lê um professor?
É claro que seria loucura afirmar que todos os professores se enquadram na descrição do parágrafo acima, entretanto, boa parte é assim mesmo, e disso também decorre o fato de nossos resultados serem tão ruins. Afinal, o que pode ensinar um professor que não lê, que não investe em sua capacitação e que em geral usa vícios grotescos de linguagem do tipo “a nível de”, “muitas das vezes”, gerundismos e etc? Este fato ainda tem como corolário a idéia de que qualquer um pode ser professor, de que é fácil sê-lo, de que não há competências e habilidades específicas para exercer a docência. Quando este sofisma for desfeito, talvez a valorização social (quase nunca se fala dela) possa vir a ser o primeiro sintoma de uma mudança significativa na educação.
       E os alunos? Nas escolas, sobretudo as públicas, justifica-se que o fracasso da educação reside na falta de interesse dos alunos. E em boa medida o desinteresse é mais que evidente. Nossos alunos hoje, independente de classe social, tem acesso ao mundo que a internet tem a lhes oferecer. É facebook, Orkut, MSN,  blogs, e as mais variadas ferramentas que transportam nossos discentes de seu mais longínquo domicílio a qualquer parte do planeta. De um lado temos a tela do computador, que é uma imensa porta que se abre para qualquer canto; do outro, a escola, que em seus muros encerra seus limites não só geográficos, mas culturais também. Dessa forma, não há como não ter interesse se o mundo que a escola oferece é infinitamente menor que o mundo que os meios de comunicação podem oferecer. Entretanto, como na escola, boa parte dos que ali são responsáveis pelo repasse de conhecimentos já estão mais do que preparados, não se pode falar que é necessário ter mais contato com esse mundo que os jovens alunos já dominam tão bem. Por fim, alunos desinteressados sempre existiram (quem nunca se desinteressou por alguma disciplina que atire a primeira pedra!), mas certamente sempre haverão os interessados, sobretudo quando existe alguém que lhes desperte ou motive o interesse.
Culpam-se também os pais e responsáveis dos alunos pelos desastrosos índices de aprendizagem verificados nas escolas. Ora, se aluno não tem interesse, se não aprende, e os responsáveis não lhe impõe o devido castigo para reverter a situação, como é que a educação pode melhorar?  Esse tipo de raciocínio parece dizer: a solução é encher as escolas de Assistentes Sociais que tenham como exclusiva finalidade trazer os pais à escola e responsabilizá-los pelos insucessos dos filhos. Ou, quem sabe, pôr Conselhos Tutelares em todas as escolas.
   Parece também dizer que nas escolas particulares os pais são extremamente participativos, coisa que sabemos bem não é tão verdadeira. O que existe na escola particular é uma cobrança maior dos pais, posto que ali há investimento direto, é dinheiro que sai do seu bolso direto para os cofres da escola. Mas e na escola pública? Ah, ali é diferente, porque os pais, em geral pessoas com parco nível de esclarecimento, acham que é um favor que a escola faz ao educar seus filhos. E a escola pública, (a)fundada nas práticas de benevolência com os inertes, sobrepuja a meritócracia sob o manto da ineficiência e da inoperância uma vez que não estipula metas a serem alcançadas.
Sem metas a alcançar, tudo pode continuar como está... e se é para culpar alguém, culpemos... sei lá, o sistema, que tal?
E assim continuaremos sendo os primeiros. Comemore Maranhão, somos os primeiros no ENEM, se lermos a lista de classificação de baixo pra cima!


(13.09.2011)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Coquetel molotov linguístico


No Brasil a prática de tortura é considerada crime hediondo. O problema, como tão bem sabemos, é que a lei brasileira é muito tímida quando precisa ser posta em uso. No caso que trato aqui, isso se torna ainda mais complicado. Mas, vamos por partes: primeiro é preciso saber o que é tortura.
Procurei o meu inseparável amigo Aurélio, mas não pude encontrá-lo. Meu senso de organização já não é o mesmo! Isto, entretanto, não foi problema dado que o Houaiss estava ali como quem não queria nada e resolveu quebrar o meu galho. Ao abri-lo, com todo respeito, fui até a página 725 e ali encontrei o verbete procurado: tortura. 1. volta tortuosa; dobra 2. dor violenta infligida a alguém; suplício 3. sofrimento, angústia.
 Sem muitas dobras, podemos dizer que torturar é infligir dor, fazer sofrer. E há tempos venho sendo torturado pelos vícios linguísticos (denominação até pomposa) que reverberam nos meus pobres e combalidos ouvidos.
Volta e meia surge uma destas expressões que rapidamente se propagam, grudam feito carrapato e tem efeitos colaterais deveras prolongado. Não daria para citar todos, por isso vou me ater àqueles que me vêm à lembrança, ou seja, os mais irritantes.
 Se fosse fazer um toplist, com certeza em primeiro lugar estaria ele o 'gerundismo'. É incrível como ele se mantém com tanto vigor. Se pararmos para prestar atenção, logo percebermos que está todo mundo ...ando, ...endo, ...indo, ...ondo ou ...undo alguma coisa. O gerundismo é tão inconveniente que até nos momentos mais íntimos ele aparece:
- Querida, você poderia estar tirando o seu langerie?
- Ah, só depois que você estiver indo apagar a luz...
- Opa! Pois estarei fazendo isso agora mesmo!
Devido a sua grande penetração (não pensem bobagens, por favor), essa praga linguística é a que causa maior dependência e bem pode ser classificada como pandemia, proliferando-se ainda mais rápida que a gripe suína. Infelizmente estamos longe da cura.
Ao lado do gerundismo encontramos o não menos famoso 'enquanto'. Cruz credo, só de pensar nele já doem meus minguados ouvidos. A todo momento nos deparamos com expressões como: eu enquanto  professor, eu enquanto cristão, eu enquanto pessoa... Parece mesmo que uma síndrome de personalidade múltipla contaminou a todos. Como se para ser professor o infeliz deixasse de ser cristão e de ser pessoa... Todo mundo agora se tornou um pouco médium. Mas o pior é que quando o energúmeno usa o enquanto ele o faz com tanto orgulho e com o peito estufado como se em seguida fosse dá o brado “independência enquanto morte!”. E é de matar mesmo.  
Mas o enquanto não anda só. Com ele sempre está o seu amiguinho, igualmente chatinho, 'a nível de'. Este é podre e também perturba bastante. Todavia, neste caso o tratamento é bem mais fácil e pode surtir bons resultados: recomenda-se que os usuários utilizem em nível de e rapidamente o vício poderá ser sanado.
Nas minhas recentes ouvidanças tenho percebido a presença de uma praga relativamente nova que vêm conquistando adeptos com muita intensidade, o 'questão'. Em qualquer conversa que dure mais de 10 minutos sempre entra as famosas “questões”: com relação a questão do tempo...; por uma questão de educação...; isso é uma questão que não pode ser discutida aqui... E por aí vai.  
 Para finalizar, lembrei-me agorinha do grande 'muitas das vezes'. Seria injustiça da minha parte não fazer referência a esta maldita expressão que tanto ofende nossa gramática. Isto por que muitas são as vezes que ouço essa indecência ser pronunciada.
Mas o pior é quando todas elas se juntam numa espécie de coquetel molotov linguístico, pronto para explodir bem perto dos nossos indefesos ouvidos:  
A nível de esclarecimento, deixo claro que eu, enquanto professor, não posso estar permitindo que se propague a questão desses vícios que, muitas das vezes, poderão estar passando despercebidos por quem os utiliza.
         Deveria ter algum modo de se punir os torturadores que sadicamente impõe sofrimento e angústia aos ouvidos inocentes com essas coisas medonhas. A pena para quem comete este tipo de ilícito linguístico deveria ser ler um bom livro a cada 20 dias para melhor usar a língua portuguesa. Pena, se possível, perpétua!

Ronald Corrêa
(25.06.2009)

Nós, os cegos do castelo


Quem somos nós? Ao final de Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, essa foi a única pergunta que me fiz. Deixando de lado as suas companheiras, de onde viemos e para onde vamos, me perturbou intransigentemente a indagação sobre as qualidade ou características que nos afirmam como o animal que se destaca de todas as outras espécies existentes.
Saramago é um mestre em mexer com as estruturas consolidadas, transformando o absurdo em palpável, o impensável em preocupante. Assim o fez em Ensaio Sobre a Lucidez, em que um ”corte de energia cívica” levou a maioria dos eleitores de um país a votar em branco; assim também o fez em as Intermitências da Morte, onde em um distante lugar as pessoas acordaram e perceberam que não conseguiam mais morrer. Ensaio Sobre a Lucidez é carregado de sentido político; Intermitências, por sua vez, alia uma situação inusitada com uma boa dose de humor; os dois se afastam necessariamente de Ensaio sobre a cegueira na medida em que este nos leva a fazer a tão temida pergunta que iniciou este texto: o que somos?
No belíssimo filme dirigido por Fernando Meirelles, quando todos perdem a visão, uma nova estratificação social é criada, uma nova rede de interação e dependência, sentimentos adormecidos na caixa de Pandora são despertados e o reino do Id sufoca vorazmente o da racionalidade. As cenas são chocantes, a luta pela sobrevivência, a exploração do homem pelo próprio semelhante, a barbárie e a falência da decência são ingredientes que tornam ainda mais instigante a história. E é nesse cenário bizarro e assustador que o ser humano, até então o ser superior, recrudesce ao nível mais primitivo da cadeia alimentar.
Os arautos pós-modernos, sobretudo Jean-François Lyotard, afirmavam que todos os grandes discursos da modernidade haviam ido por água à baixo no século XX: a experiência soviética maculou o marxismo; o nazismo aviltou a liberdade, a igualdade e a fraternidade de uma só vez; a idéia de que os avanços tecnológicos se converteriam em melhorias para toda população global esbarrou na sede do mercado que só a alguns é benévolo. Em certa medida, Ensaio sobre a cegueira é a prova de que a barbárie mora bem mais perto do que imaginamos. E das telas ou das páginas do livro para nossa realidade, a distância é muito curta. Afinal, o que é que vemos todos os dias no nosso fatídico trânsito? Pessoas sobrepujando as normas, desrespeitando ensandecidamente o outro, o sentimento de que ‘meu carro, meu reino’ se sobrepõem a qualquer outro interesse. Quando diante de uma faixa de pedestre, se pensa primeiro em quem dirige, é também conceber o ser humano que precisa atravessá-la como algo em uma escala inferior à da máquina (carro). Vivemos cada um dono de um reino imaginário, cegos pelo egoísmo e pela ânsia de se ganhar tempo para não saber o que fazer com ele.  
  Ademais, nossa cidade inteira padece enferma vitimada pelo abandono do poder público. Há uma cena do filme que foi gravada em São Paulo, na qual foi preciso interditar um trecho da cidade e despejar toneladas de lixo para dá o tom caótico que se esperava. O resultado final em muito se assemelha com a São Luis de todos os buracos, da sujeira por todos os lados.
A reflexão que Ensaio sobre a Cegueira nos direciona remete sobretudo à indagação do ‘o que somos?” não como um ponto final, mas como reticências que conduzam ao “o que queremos ser?”. Barbárie ou civilização? Se optarmos pelo segundo, temos muito trabalho por fazer e definitivamente, não dá para continuar na condição de “cegos do castelo”.
Ronald Corrêa
(16.05.2011)

Cotidiano sujo


A escrita suja de Bukowski me fascinou desde a primeira leitura. Os contos, crônicas e poemas sujos (bem mais do que o de Gullar), exerceram de imediato, um encanto. Às vezes, perguntava se havia em mim alguma coisa mórbida que me fazia ter tanto apreço pelos textos do velho Buk. Vendo agora alguns scraps e e-mails que recebo, nossa TV e nossos políticos, da pra entender que o que é existe é uma perfeita sincronia entre os escritos malditos e nosso não menos maldito cotidiano.
Primeiro, foram as fotos do acidente que vitimou os Mamonas Assassinas anos atrás. Seguiram a estas, as imagens da queda do vôo da Gol em matas do Pará. Recentemente, me surpreendeu um e-mail com as supostas fotos do resgates dos corpos da queda do vôo 447 da Air France nas águas abissais do Atlântico. Como poderia alguém ter feito fotos dos corpos, se só a aeronáutica teve acesso ao local? E ainda tem gente que acredita e abre tais e-mails.
O último e não menos mórbido, foi um scrap que dizia conter imagens do embalsamamento do corpo de Michael Jackson. O próprio astro já me parecia, por demais, insólito. O seu embalsamento vá lá...
  Confesso que já me senti horrorizado com essas coisas. Hoje, nem tanto. Afinal, o que parece é que na era do espetáculo, das celebridades frívolas e do sucesso efêmero, tudo é válido para chamar a atenção. Os reality shows que invadem nossas casas (e que de real só tem o nome) são a prova cabal da decadência dos princípios éticos e do bom senso O jogo sujo, as trapaças e os conchavos que vemos nesses programas refletem em miniatura o que os nossos representantes fazem em Brasília em proporções gigantescas.
Bukowski, que se autodenominava o velho safado, deixou de me chocar quando vi os seus personagens imundos representados por nossos também políticos. A literatura suja cria vida na política suja de um dinossauro como o presidente do senado José Sarney (será que ele autodenomina-se de alguma coisa?), que tenta transformar o país em sua ilha particular de mandos e desmandos. O Brasil vira Curupu sob a pena do literato que bebe Maquiavel e vocifera Rousseau.
E assim, seguimos nosso penoso dia a dia, em meio à fotos de astros sendo embalsamados, corpos boiando no Atlântico, fantoches se digladiando em reality shows, políticos fazendo o papel de Dorian Gray, e nós, pobre mortais, sempre a reclamar de tudo. A literatura suja do velho safado está mais viva que nunca e, pro azar dele, o cenário hodierno é um prato cheio para sua afiada escrita. Nestes dias cinzentos, ainda vale à penas seguir o conselho do poeta maldito:
“Se vai tentar,
Vá em frente.
Não há outro sentimento como este
Ficará sozinho com os Deuses
E as noites serão quentes
Levará a vida com um sorriso perfeito
É a única coisa que vale a pena.”
(Bukowski)
Pois é, aproveite e sorria, sorria muito. Garanto que você não está sendo filmado!
P.S. Se tiver tempo, leia Bukowski.

Ronald Corrêa
(09.07.09)