segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Felcidade(s)

                                                                                                                                      Ronald Corrêa
Tempos atrás, quando pensava que era possível procurar e encontrar resposta para toda e qualquer pergunta, eu imaginava que o objetivo maior de todo e qualquer indivíduo seria encontrar a felicidade. De lá pra cá talvez eu não tenha mudado tanto. Tirando o excesso de tecidos adiposos na região abdominal e alguns recalcitrantes fios de cabelos brancos que insistem em dar colorações à la Antonio Fagundes aos meus cabelos, continuo, sim, o mesmo e persisto em crer que a busca maior de qualquer ser humano é mesmo aquela que o conduz à felicidade. O problema que surge e que em muito dificulta aqueles que se aventuram nesta árdua caminhada é pensar que existe uma só felicidade.

Ok, sei perfeitamente que está parecendo que daqui pra frente vou elencar algumas dicas do tipo: como ser feliz em dez dias, ou o segredo para ser feliz, ou quem sabe ainda a chave da felicidade... Aos que assim pensaram sugiro cautela. Primeiro porque sou daqueles que odeia receitas de sucesso: odeio livros de auto-ajuda, sobretudo, porque só ajudam os seus autores! Segundo, é que o motivo que me levou a escrever esta pequena crônica foi um fato deveras insólito. Certo dia, num belo final de tarde no meu tradicional ônibus das 17:30h, me deparei com uma cena curiosa: um homem de meia idade, olhar meio espantando, barba por fazer e cabelo desgrenhado, sobe no ônibus com um pequeno pacote de papel, tipo sacola de supermercado. De dentro deste sobressaía a cabeça de um pequeno cãozinho.
Minha primeira reação foi conter o sorriso que só a muito custo pode ser abafado. O mesmo não posso dizer de meia dúzia de outros passageiros que se limitaram a voltar os rostos para as janelas e liberar em pequenas doses os risos. Passada a primeira impressão, notei que o cidadão lá com seu cachorrinho, fazia pouco caso do local onde estava e da reação dos que ali estavam. O que o preocupava mesmo era o bem estar do seu companheiro. Aquilo me fez ir longe.

Veio aos meus perturbados pensamentos que felicidade talvez seja uma palavra que só pode ser conjugada no singular por quem a sente e em momentos específicos. Àquele que dela fala, escreve ou que pretende compreendê-la, só poderá usá-la no plural. Melhor ainda: para tentar entender a felicidade é preciso considerar que ela é feita de pequenos momentos: pequenos tijolos nos quais se encontram pedaçinhos dela, e que ao serem somados lhe dão contornos maiores que, ainda assim, não passarão de uma felicidade efêmera. E é por isso que às vezes se torna tão complicado encontrar esta tão procurada e almejada senhora, ela a felicidade.
Viagens à parte, certa vez escrevi que somos em essência puro hedonismo. Do estóico faquir que decide por passar a vida sobre colchões de prego ao fanático religioso que se auto-flagela impiedosamente, somos todos inveterados hedonistas. Cada um, a sua forma e por caminhos próprios, procura a felicidade. Alguns irão encontrá-la em deus, outros na namorada, no amante, no sexo, na literatura, num lugar distante ou mesmo num simples sorriso.
Falando em sorriso, ele é um dos mais enigmáticos símbolos de felicidade. Muitos o consideram a expressão mais perceptível dela, sua exteriorização. Eu considero o sorriso não mais que uma trincheira que, ao mesmo tempo em que pode ser um ponto de ataque também o é de defesa. Ao ouvir Keane o meu sorriso triste é de felicidade, a mesma que sinto quando ouço o Paulinho Pedra Azul “cantar”, embora aqui o sorriso seja alegre.
Mas a felicidade vai além dos lábios esticados. Ela pode ser “clandestina” como a quis Clarice Lispector, pode ser “realista” como a descreveu Martha Medeiros, pode ser música como a cantou Caetano, pode mesmo ser tristeza como defende o Rubem Alves e pode ser solidão como tanto evocou o Fernando Pessoa.
E por falar nele, uma das coisas que me fez tornar fã incondicional do poeta da terra do bolinho de bacalhau é que ele dizia que nós temos a mania de criar mistérios onde eles não existem. Por isso também ouso dizer que não há mistério que torne a felicidade algo intangível. Pelo contrário, é na simplicidade que ela reside. O encontro com o prazer inebriante que nos é proporcionado pela felicidade pode está mais perto do que imaginamos, mas insistimos em procurá-la nos lugares mais distantes.
É preciso ser óbvio e considerar a única pista que temos: só a encontrará aquele que se dispor a fazer o seu próprio caminho. Fazer o próprio caminho é a grande dificuldade posto que fomos moldados a sempre seguir por trilhas já existentes. Fazer seu próprio caminho desperta o medo e o medo, por seu turno, nos faz sempre enxergarmos dez dificuldades à frente de uma singela e ofuscada possibilidade. E dessa forma tudo se torna mais dificil!
Ainda assim, se nao estiver muito fácil a procura, vale a pena pegar um pacote, por dentro dele um cachorrinho e sair por aí, dando volta de ônibus. Se não vier a felicidade, pelo menos sorrisos virão, e sorrisos são trincheiras da felicidade.
                                                                           Repostado em 20.11.12

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dissecando Bethânia


                                                                                         Ronald Corrêa


Não deixa de ser um processo ritualístico e, embora eu esteja mais para um cínico cético e cada vez mais distante do misticismo, é também um momento em que uma certa dose de mágica parece fluir. Tudo começa com o cauteloso contato com a superfície negra, delicada, viscosa, valiosa, do vinil que, ao ser retirado da capa que lhe protege, me faz vir a cabeça a imagem de um sol desvirginando a madrugada. Ali, sedentas de voz, escondem-se trilhas finas sobre as quais deito com extremo cuidado o braço do tocadisco.

De imediato começam a pipocar pequenos estalos, sinais do tempo, um ruído que parece chamar a atenção dos meus ouvidos para que não percam momento algum da audição que está por começar. Já iniciado o movimento giratório, com certa dificuldade ainda consigo ler, escrito em letras cor de prata que contrastam com o fundo azul marinho, o ano de 1978, que deixa patente a força e a atualidade das palavras ali gravadas e que lentamente começam a emanar tal qual um canto de sereia irresistível. Sereia Bethânia que com sua voz, misto de doçura e dureza, embala sonhos meus. Logo de início ela me mostra a boca molhada e ainda marcada pelo mais famoso ato de negação depois do de Pedro: “negue o seu amor, seu carinho, diga que você já me esqueceu...”

Roda o disco, roda viva, roda cheia de vida, qual nas calhas de roda que gira a entreter o coração, como sabiamente dizia Pessoa, seguem a criar vida os versos. As palavras já não mais pertencem àquela negra superfície, se transformam em seres com vida e vontade próprias. Inebriam pensamentos, distorcem as ideias, confundem, mexem, causam mal estar e depois se acomodam como se inocentes fossem.

O ritmo cadenciado e calmo, aos poucos ganha contornos diferentes e uma agressividade doce e sufocante, sem que de imediato se faça perceber, vai ganhando corpo à proporção que a agulha se aproxima do centro do disco, como que uma mão que se aproxima do peito para sentir o seu pulsar mais intenso. E o que era a mansidão de ‘ronda’ cede lugar ao desespero visceral de ‘explode coração’.

Que experiência fantástica essa que é a música capaz de nos oferecer. Maria Bethânia, como poucas, consegue causar essa sensação de instabilidade, dizendo ora “pai afasta de mim esse cálice” como que pedindo clemência e paz, para em seguida afirmar que quer “sentir a dor dessa manhã nascendo, rompendo, rasgando tomando meu corpo” num rasgo de insensatez que só a mais desvairada paixão é capaz de proporcionar.

Percebo então que o disco termina e de forma saudosista o movimento vai cessando lentamente, como uma chama que é obrigada a apagar independente de sua vontade; como o sono que insiste em me assaltar por mais que eu tente resistir. Refém dele, me resta um tênue lapso de força que ainda me permite puxar a tomada e desligar o som. Com os olhos a se cerrar vendo o esvair-se da noite pela janela, Bethânia mais uma vez canta baixinho nos meus ouvidos: “no meu céu a estrela guia se perdeu, a madrugada fria só me traz melancolia, sonho meu...” Durmo.


                                                                                           29.05.2012