segunda-feira, 16 de maio de 2011

Coquetel molotov linguístico


No Brasil a prática de tortura é considerada crime hediondo. O problema, como tão bem sabemos, é que a lei brasileira é muito tímida quando precisa ser posta em uso. No caso que trato aqui, isso se torna ainda mais complicado. Mas, vamos por partes: primeiro é preciso saber o que é tortura.
Procurei o meu inseparável amigo Aurélio, mas não pude encontrá-lo. Meu senso de organização já não é o mesmo! Isto, entretanto, não foi problema dado que o Houaiss estava ali como quem não queria nada e resolveu quebrar o meu galho. Ao abri-lo, com todo respeito, fui até a página 725 e ali encontrei o verbete procurado: tortura. 1. volta tortuosa; dobra 2. dor violenta infligida a alguém; suplício 3. sofrimento, angústia.
 Sem muitas dobras, podemos dizer que torturar é infligir dor, fazer sofrer. E há tempos venho sendo torturado pelos vícios linguísticos (denominação até pomposa) que reverberam nos meus pobres e combalidos ouvidos.
Volta e meia surge uma destas expressões que rapidamente se propagam, grudam feito carrapato e tem efeitos colaterais deveras prolongado. Não daria para citar todos, por isso vou me ater àqueles que me vêm à lembrança, ou seja, os mais irritantes.
 Se fosse fazer um toplist, com certeza em primeiro lugar estaria ele o 'gerundismo'. É incrível como ele se mantém com tanto vigor. Se pararmos para prestar atenção, logo percebermos que está todo mundo ...ando, ...endo, ...indo, ...ondo ou ...undo alguma coisa. O gerundismo é tão inconveniente que até nos momentos mais íntimos ele aparece:
- Querida, você poderia estar tirando o seu langerie?
- Ah, só depois que você estiver indo apagar a luz...
- Opa! Pois estarei fazendo isso agora mesmo!
Devido a sua grande penetração (não pensem bobagens, por favor), essa praga linguística é a que causa maior dependência e bem pode ser classificada como pandemia, proliferando-se ainda mais rápida que a gripe suína. Infelizmente estamos longe da cura.
Ao lado do gerundismo encontramos o não menos famoso 'enquanto'. Cruz credo, só de pensar nele já doem meus minguados ouvidos. A todo momento nos deparamos com expressões como: eu enquanto  professor, eu enquanto cristão, eu enquanto pessoa... Parece mesmo que uma síndrome de personalidade múltipla contaminou a todos. Como se para ser professor o infeliz deixasse de ser cristão e de ser pessoa... Todo mundo agora se tornou um pouco médium. Mas o pior é que quando o energúmeno usa o enquanto ele o faz com tanto orgulho e com o peito estufado como se em seguida fosse dá o brado “independência enquanto morte!”. E é de matar mesmo.  
Mas o enquanto não anda só. Com ele sempre está o seu amiguinho, igualmente chatinho, 'a nível de'. Este é podre e também perturba bastante. Todavia, neste caso o tratamento é bem mais fácil e pode surtir bons resultados: recomenda-se que os usuários utilizem em nível de e rapidamente o vício poderá ser sanado.
Nas minhas recentes ouvidanças tenho percebido a presença de uma praga relativamente nova que vêm conquistando adeptos com muita intensidade, o 'questão'. Em qualquer conversa que dure mais de 10 minutos sempre entra as famosas “questões”: com relação a questão do tempo...; por uma questão de educação...; isso é uma questão que não pode ser discutida aqui... E por aí vai.  
 Para finalizar, lembrei-me agorinha do grande 'muitas das vezes'. Seria injustiça da minha parte não fazer referência a esta maldita expressão que tanto ofende nossa gramática. Isto por que muitas são as vezes que ouço essa indecência ser pronunciada.
Mas o pior é quando todas elas se juntam numa espécie de coquetel molotov linguístico, pronto para explodir bem perto dos nossos indefesos ouvidos:  
A nível de esclarecimento, deixo claro que eu, enquanto professor, não posso estar permitindo que se propague a questão desses vícios que, muitas das vezes, poderão estar passando despercebidos por quem os utiliza.
         Deveria ter algum modo de se punir os torturadores que sadicamente impõe sofrimento e angústia aos ouvidos inocentes com essas coisas medonhas. A pena para quem comete este tipo de ilícito linguístico deveria ser ler um bom livro a cada 20 dias para melhor usar a língua portuguesa. Pena, se possível, perpétua!

Ronald Corrêa
(25.06.2009)

Nós, os cegos do castelo


Quem somos nós? Ao final de Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, essa foi a única pergunta que me fiz. Deixando de lado as suas companheiras, de onde viemos e para onde vamos, me perturbou intransigentemente a indagação sobre as qualidade ou características que nos afirmam como o animal que se destaca de todas as outras espécies existentes.
Saramago é um mestre em mexer com as estruturas consolidadas, transformando o absurdo em palpável, o impensável em preocupante. Assim o fez em Ensaio Sobre a Lucidez, em que um ”corte de energia cívica” levou a maioria dos eleitores de um país a votar em branco; assim também o fez em as Intermitências da Morte, onde em um distante lugar as pessoas acordaram e perceberam que não conseguiam mais morrer. Ensaio Sobre a Lucidez é carregado de sentido político; Intermitências, por sua vez, alia uma situação inusitada com uma boa dose de humor; os dois se afastam necessariamente de Ensaio sobre a cegueira na medida em que este nos leva a fazer a tão temida pergunta que iniciou este texto: o que somos?
No belíssimo filme dirigido por Fernando Meirelles, quando todos perdem a visão, uma nova estratificação social é criada, uma nova rede de interação e dependência, sentimentos adormecidos na caixa de Pandora são despertados e o reino do Id sufoca vorazmente o da racionalidade. As cenas são chocantes, a luta pela sobrevivência, a exploração do homem pelo próprio semelhante, a barbárie e a falência da decência são ingredientes que tornam ainda mais instigante a história. E é nesse cenário bizarro e assustador que o ser humano, até então o ser superior, recrudesce ao nível mais primitivo da cadeia alimentar.
Os arautos pós-modernos, sobretudo Jean-François Lyotard, afirmavam que todos os grandes discursos da modernidade haviam ido por água à baixo no século XX: a experiência soviética maculou o marxismo; o nazismo aviltou a liberdade, a igualdade e a fraternidade de uma só vez; a idéia de que os avanços tecnológicos se converteriam em melhorias para toda população global esbarrou na sede do mercado que só a alguns é benévolo. Em certa medida, Ensaio sobre a cegueira é a prova de que a barbárie mora bem mais perto do que imaginamos. E das telas ou das páginas do livro para nossa realidade, a distância é muito curta. Afinal, o que é que vemos todos os dias no nosso fatídico trânsito? Pessoas sobrepujando as normas, desrespeitando ensandecidamente o outro, o sentimento de que ‘meu carro, meu reino’ se sobrepõem a qualquer outro interesse. Quando diante de uma faixa de pedestre, se pensa primeiro em quem dirige, é também conceber o ser humano que precisa atravessá-la como algo em uma escala inferior à da máquina (carro). Vivemos cada um dono de um reino imaginário, cegos pelo egoísmo e pela ânsia de se ganhar tempo para não saber o que fazer com ele.  
  Ademais, nossa cidade inteira padece enferma vitimada pelo abandono do poder público. Há uma cena do filme que foi gravada em São Paulo, na qual foi preciso interditar um trecho da cidade e despejar toneladas de lixo para dá o tom caótico que se esperava. O resultado final em muito se assemelha com a São Luis de todos os buracos, da sujeira por todos os lados.
A reflexão que Ensaio sobre a Cegueira nos direciona remete sobretudo à indagação do ‘o que somos?” não como um ponto final, mas como reticências que conduzam ao “o que queremos ser?”. Barbárie ou civilização? Se optarmos pelo segundo, temos muito trabalho por fazer e definitivamente, não dá para continuar na condição de “cegos do castelo”.
Ronald Corrêa
(16.05.2011)

Cotidiano sujo


A escrita suja de Bukowski me fascinou desde a primeira leitura. Os contos, crônicas e poemas sujos (bem mais do que o de Gullar), exerceram de imediato, um encanto. Às vezes, perguntava se havia em mim alguma coisa mórbida que me fazia ter tanto apreço pelos textos do velho Buk. Vendo agora alguns scraps e e-mails que recebo, nossa TV e nossos políticos, da pra entender que o que é existe é uma perfeita sincronia entre os escritos malditos e nosso não menos maldito cotidiano.
Primeiro, foram as fotos do acidente que vitimou os Mamonas Assassinas anos atrás. Seguiram a estas, as imagens da queda do vôo da Gol em matas do Pará. Recentemente, me surpreendeu um e-mail com as supostas fotos do resgates dos corpos da queda do vôo 447 da Air France nas águas abissais do Atlântico. Como poderia alguém ter feito fotos dos corpos, se só a aeronáutica teve acesso ao local? E ainda tem gente que acredita e abre tais e-mails.
O último e não menos mórbido, foi um scrap que dizia conter imagens do embalsamamento do corpo de Michael Jackson. O próprio astro já me parecia, por demais, insólito. O seu embalsamento vá lá...
  Confesso que já me senti horrorizado com essas coisas. Hoje, nem tanto. Afinal, o que parece é que na era do espetáculo, das celebridades frívolas e do sucesso efêmero, tudo é válido para chamar a atenção. Os reality shows que invadem nossas casas (e que de real só tem o nome) são a prova cabal da decadência dos princípios éticos e do bom senso O jogo sujo, as trapaças e os conchavos que vemos nesses programas refletem em miniatura o que os nossos representantes fazem em Brasília em proporções gigantescas.
Bukowski, que se autodenominava o velho safado, deixou de me chocar quando vi os seus personagens imundos representados por nossos também políticos. A literatura suja cria vida na política suja de um dinossauro como o presidente do senado José Sarney (será que ele autodenomina-se de alguma coisa?), que tenta transformar o país em sua ilha particular de mandos e desmandos. O Brasil vira Curupu sob a pena do literato que bebe Maquiavel e vocifera Rousseau.
E assim, seguimos nosso penoso dia a dia, em meio à fotos de astros sendo embalsamados, corpos boiando no Atlântico, fantoches se digladiando em reality shows, políticos fazendo o papel de Dorian Gray, e nós, pobre mortais, sempre a reclamar de tudo. A literatura suja do velho safado está mais viva que nunca e, pro azar dele, o cenário hodierno é um prato cheio para sua afiada escrita. Nestes dias cinzentos, ainda vale à penas seguir o conselho do poeta maldito:
“Se vai tentar,
Vá em frente.
Não há outro sentimento como este
Ficará sozinho com os Deuses
E as noites serão quentes
Levará a vida com um sorriso perfeito
É a única coisa que vale a pena.”
(Bukowski)
Pois é, aproveite e sorria, sorria muito. Garanto que você não está sendo filmado!
P.S. Se tiver tempo, leia Bukowski.

Ronald Corrêa
(09.07.09)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Flanelinha para prefeito!!!!


Há poucos dias, lendo uma crônica do livro “Cenas de Ruas” do conterrâneo Sebastião Jorge, intitulada São Luis sentimental, mais uma vez dei-me conta de como nos falta políticos de verdade e eleitores menos displicentes. Em um trecho bastante salutar, Jorge diz o seguinte sobre nossa cidade:
“O que falta, para se tornar identificada com os novos tempos, são os cuidados do poder público, bem como a mudança no comportamento das pessoas, a fim de que deixem de ser retrógradas.” 
A crônica poderia ter sido escrita hoje, entretanto para nossa tristeza, ela data de maio sim, mas do ano de 1963. Isto mesmo, passados 48 anos e o olhar acurado do cronista de ontem nos mostra que no decorrer de quase meio século, a estúpida e perversa herança de políticos chinfrins aliada à parcimônia cívica da população, vem ajudando a transformar nossa ilha do amor em um teatro de horrores: uma Atlântida tropical que pouco a pouco submerge em meio aos desmandos da administração pública municipal.
A cidade padece, com seu corpo maculado por buracos em todos os cantos, em todas as dimensões. O trânsito, mais caótico ainda, ilustra bem a ausência do poder público: a lei é a do esperto, do apressado, do selvagem. Não há semáforos, placas ou faixas que imponham respeito. Os agentes de trânsito, para alguns casos, são tão raros quanto políticos sérios. Em outras situações porém, parecem onipresentes. Como o acontecido no dia 04 de maio, em que uma quantidade magnífica de agentes, mais de 10, de forma ignominiosa multava e ameaçava guinchar os carros estacionados em espinha a frente da Praça Gonçalves Dias. O argumento: o código de trânsito não permite aquele tipo de estacionamento. O que mais causou indignação nos condutores dos carros ali estacionados, em sua maioria Coordenadoras Pedagógicas da rede municipal e estudantes de medicina, foi o tratamento “super educado” daqueles que deveriam ter o mínimo de competência para lhe dá com pessoas, visto trabalharem com o público. A idiota síndrome do super-herói, em que o portador se considera superior aos demais mortais pelo uso de determinado uniforme, parecia ter contagiado severamente os agentes.
Uma tristeza sob vários aspectos, dentre eles:
1º - Pelo despreparo demonstrado pelos agentes públicos;
2º - Pelo desprezo ao caráter educativo (advertir) e a exacerbação do caráter coercitivo (punir);
3º - Pelo desconhecimento da palavra respeito;
4º - Pela ignorância do real papel que recai a qualquer agente investido de função pública;
5º - Pela falta de conhecimento e clareza dos dispositivos legais que deveria ser sua ferramenta de trabalho.
Com relação a este último aspecto, vejamos o que a lei diz sobre o tal estacionamento dito proibido pelos agentes de trânsito. O Código Nacional de Trânsito é enfático sobre o assunto:

  Art. 48. Nas paradas, operações de carga ou descarga e nos estacionamentos, o veículo deverá ser posicionado no sentido do fluxo, paralelo ao bordo da pista de rolamento e junto à guia da calçada (meio-fio), admitidas as exceções devidamente sinalizadas. (grifo nosso)

Ora, o artigo acima deixa mais do que evidente que o estacionamento deverá ser feito paralelo ao meio-fio, tal qual afirmaram os briosos agentes de trânsito. Entretanto, os talvez esquecidos agentes não lembravam que o mesmo artigo admite exceções quando devidamente sinalizadas.
É fato: existe sinalização em sentido de espinha no local. Saber quem sinalizou não é competência do condutor. Segundo o que afirmaram os nobres agentes, a sinalização foi feita pelos flanelinhas que atuam na região. Aquilo que deveria ser motivo de vergonha, parecia ser uma vitória para os agentes, pois, se é verdade que os flanelinhas sinalizaram o local, resta provado a ausência, a omissão do poder público, da administração pública municipal que, para nosso azar, só mostra sua presença para, vilipendiosamente, multar condutores que simplesmente foram induzidos ao erro.                                    
Pelo andar da carruagem, não será nada surpreendente se no ano que vem, aparecerem flanelinhas pleiteando o cargo maior da administração pública municipal. O que poderia até ser positivo. Quem sabe nossos estacionamentos não viessem a ser devidamente sinalizados e os nossos atenciosos agentes de trânsito, em vez de ficar em praças conferindo carros já estacionados, fossem deslocados para as avenidas congestionadas ou para os cruzamentos de vias confusos que, verdadeiramente, causam sérios problemas para nosso caótico tráfego.
É hora de seguir o conselho do Sebastião Jorge: poder público mais cuidadoso e pessoas com os olhos pra frente, nada de ser retrógrado. E de repente, flanelinhas no poder!!!! Será que ia? Quem sabe! Porque até agora o “agora vai” não foi.

                                                                                                                           Ronald Corrêa
                                                                                      (11.01.2011)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

A difícil arte de empilhar livros


Escrever era para ser bem mais que um ofício, deveria ser um prazer. Prazer não nasce do nada, não cai de céu e muito menos vem escrito no DNA. Confesso que sempre achei que o prazer precisa de um pouco de dor. É como a história da viúva negra que sempre mata seu parceiro depois de lhe oferecer toda sua libido ou como a mãe, que depois do dolorido parto, leva a vida a amar sua cria. Gosto de me impor o dever, a obrigação, de escrever. As idéias nem sempre são amigas e por vezes se exilam longe da vontade das mãos. As idéias têm vida própria e nem adianta forçar a barra, isso só causaria mais dor.
Assim, deitado à rede, sob o ranger da escapula não lubrificada, notebook ligado, Word com sua folhinha em branco e a única coisa à vista era o meu reflexo na tela. Idéia se existia era sobre minha barriga que, refletida na tela, confirmava que, a despeito dos meus esforços, continuava crescendo! Por cima do notebook vejo minha pequena estante de livros recém arrumados. Foi um trabalho árduo de início, pois minha intenção era separar os livros, os CDs e os discos de vinil de forma organizada: livros de Direito em um canto, livros sobre em Educação em outro, os de Filosofia em outra parte e os de Literatura em seu devido espaço. Da mesma forma, os CDs: MPB aqui, rock ali, reggae acolá... Os vinis teriam também seu nicho próprio. Vã tentativa. Meu senso de organização perdeu-se em algum recôncavo de minha turva cabeça. Além disso, a paciência é sempre menos do que desejamos.
Depois de simplesmente encaixar os livros aleatóriamente, achei muito engraçado a forma como ficaram dispostos. Antoni Zabala colou-se ao Sergio Rouanet, que por sua vez ficou ligado à Lya Luft. O sempre divertido Luis Fernando Verissimo tornou-se vizinho do Steve Connor. Já imaginou o Verissimo conversando sobre “Bandeira Branca” com o sisudo Connor e sua Cultura Pós-Moderna? Seria bacana, não?
Nosso conterrâneo Ferreira Gullar fez par com os três Cadernos do Cárcere do Gramsci. Imaginei o filósofo italiano falando sobre Hegemonia e o Gullar, atento e contemplativo, lembrando dos anos de exílio na Argentina e do seu Poema Sujo.
Cornelius Castoriadis unia-se ao Perrenoud. Este último deveria está matutando com seus botões: “além das 10 novas competências para ensinar, deveria criar uma décima primeira para tornar o Castoriadis compreensível ao leigo?”. Juro que isso me seria muito útil.
Umberto Eco avizinhou-se à biografia do Renato Russo escrita pelo Arthur Dapieve, e os dois formaram trio com a Clarice Lispector. Um pouco à esquerda e sem qualquer conotação política, estavam os russos Tolstoi, Tchekov, Turguniev, Gorki, Gogol e Dostoievsky coladinhos aos Contos Eróticos do Luiz Vilela. Falando em erótico, devia dar pano prá manga a proximidade que se estabeleceu entre o Marques de Sade e a Martha Medeiros que ainda contavam com companhia de Saramago. Que ensaio poderia dali sair?
Mario Prata teve o prazer, que me causou inveja, de ficar colado no Fernando Pessoa. Deu até pra imaginar um pequeno diálogo:
Pessoa: O poeta é um fingidor...
Prata: ... e a mulher que fuma é, ante de tudo, sexy!
Acho que o diálogo não ia caminhar tão bem!
União nem tão estável e bem pouco provável foi a do Stanislaw Ponte Preta com o Michael Foucault. Minha cabeça perturbada contemplava o carequinha francês falando sobre Vigiar e Punir e a tia Zulmira exclamando: - Que cara mais diFOUCAULToso!!!!!!
Não menos difícil parecia a conversa do Clóvis Beviláqua e seu Introdução ao Código Civil e as Putas Triste do Gabriel Garcia Márquez.
De todo o meu vão trabalho, tive a preocupação de apenas separar dois dos meus preferidos. Primeiro deixei o Chico César e seu “Cantáteis” longe de todos, porque a sua poesia é tão singela que não dá pra colar com ninguém. E, segundo, separei a obra de Bukowski toda em um só canto, tendo como único vizinho dois livros do Woody Allen. Os motivos são meio que óbvios: Bukowski é contagioso e se ele se junta à Educação ou ao Direito, putz... Já o Woody, neurótico que é, só poderia ficar mesmo próximo do velho e rabugento Buk.
Se as idéias se exilam, o país preferido delas é o livro, os bons livros. Acho que foi bem melhor não me esforçar para separar os livros de maneira certinha, não teria graça. Melhor mesmo é economizar o esforço para minha barriga que, a despeito do meu estoicismo, continua teimosamente crescendo. Bom mesmo seria se as idéias surgissem da barriga!!!
Ronald Corrêa
                                                                                                                                                25.02.2010

Corrupção X Corrupsomos


Quarta-feira, 9 da manhã, fila do caixa eletrônico no supermercado, calor nauseabundo, eu ali, último da fila, na minha paz inabalável. Bem a frente, travando uma infindável luta com a máquina, um senhor com um pouco mais de quarenta, tenta incansavelmente sacar o seu soldo. Aqui, próximo a mim, uma senhora se aproxima esbaforida perguntando se aquela era a fila para o caixa do Banco do Brasil. Digo que sim e volto à minha tranquilidade inicial.
A fila não era das menores. O senhor lá na frente parecia, enfim, ter vencido o último round da luta e, ao passar por mim, trazia em meio a um sorriso maroto de satisfação, o extrato bancário que, para ele, parecia um merecido troféu.
A senhora atrás devia também está na casa dos quarenta. Impaciente, comentava a cada vez que alguém se punha à frente da máquina e passava ali mais do que cinco minutos:
- Tem gente que pensa que está em casa e que o cash é vídeogame. Esse pessoal não respeita mesmo o tempo e a paciência dos outros, tu não achas?
Sim, era verdade. E ela não estava nem um pouco respeitando a minha paciência que há poucos se esvaia.
Passados alguns longos minutos (que se tornavam mais longos com o as queixas infindáveis da senhora que “me fazia companhia”), chegou a minha vez de finalmente “brincar com o tal vídeogame”. Assim que me aproximo da máquina uma senhora de idade bastante avançada pede para que eu a auxilie assim que terminasse de usar o caixa. Evidentemente que em respeito, peço que a senhora passe a minha frente e faça uso antes de mim. Foi o estopim para o poço de chatice que estava em minha retaguarda voltasse a entoar sua ladainha infindável:
- Esse pessoal não respeita mesmo, só porque é idoso acha que pode entrar a qualquer hora na frente de todos...
A língua da víbora não parava. Eu, do meu lado, fazia questão de ajudar com toda a paciência do mundo àquela senhora simpática que, dos autos de seus mais de 60 anos, com a maior desenvoltura brincava comigo, apontando para minha camisa e dizendo que nosso time, o Flamengo, havia sido roubado na partida contra o Fluminense. Além de simpática, sábia torcedora, a senhora.
Eu pensava que não só o Flamengo havia sido roubado, mas algo maior, algo fundamental, vinha sendo paulatinamente roubado de todos nós, brasileiros.
A atitude daquela senhora que de tudo e de todos reclamava é a atitude de muitos outros que se dizem possuidores de todos os direitos. Naquela situação ela tinha o direito de reclamar, ela tinha o direito de ter uma fila ágil, ela tinha o direito de exigir a não demora dos usuários do caixa eletrônico. Todos os direitos lhe eram devidos.
É pensando assim que se avança um sinal vermelho: estou com pressa, tenho um compromisso impreterível, logo, tenho o direito de avançar o sinal vermelho. É tomando esse raciocínio que age quem se vale da influência pessoal para economizar tempo: conheço fulano em tal repartição, vou falar direto com ele sem precisar entrar em fila, ou, sou filho de fulano, tenho que falar com sicrano agora. É evocando pretensos direitos que ridicularizamos nosso semelhante: tu sabes quem sou eu?  É locupleto de direitos que, ao faltarmos em determinados compromisso, mandamos alguém por nós assinar a lista de participantes...
Os casos são inúmeros. O que me assusta é que, quando boa parte dos que agem assim se deparam com casos do tipo do governador do Distrito Federal, há um estarrecer de moral, uma convulsiva repulsa a tais atos. Parece que corrupção é aquela que se mostra na TV. A nossa, que é isso? Nem corrupção é! É apenas um atalho cívico na efetivação dos “nossos direitos”.
O brasileiro se acostumou com a idéia da lei do menor esforço, do jeitinho para tudo, da exxxperteza (com legítimo chiado carioca), como forma de se dá bem. Quando somos nós que utilizamos esses atalhos, tudo ok, é permitido, até compreensível. Quando o outro faz: putz! Consternação, assombro, espanto e, por fim, revolta.
Lacan dizia que “amamos os outros e suas diferenças, desde que a diferença dos outros seja iguais às nossas”. Morreu Lancan sem ter podido ver um de seus aforismos ser subvertido por nós. Até isso conseguimos!
Quando me vem à cabeça a imagem daquela mulher da fila, super estúpida, tenho a impressão de que, aproveitando a reforma ortográfica, cabe a inserção de mais um verbete: corrupsomos.
Assim fica mais fácil de nos situarmos: corrupção é todo ato ludibrioso e com intento de satisfazer interesses pessoais de forma ilícita que os outros fazem e que nos causam indignação; corrupsomos é quando nós fazemos estes mesmos atos e nos enaltecemos pelo feito.

Ronald Corrêa
(17.12.2009)

Ave César!


Os cabelos mudaram muito. Da primeira vez que vi o Chico, “à primeira vista” parecia uma cópia banto do Cebolinha do Maurício de Souza. Literalmente minha tribo me perdeu quando ouvi a envolvente “Isso”, as dançantes “Benazir” e “Mandela” e a pura poesia de “Esta”. Ele perguntava “Onde estará o meu amor” e os ouvidos sedentos de qualidade o agradeciam. Construía um templo de asseclas definitivamente adoradores desse meio inca, meio maia, muito pigmeu vindo de Catolé do Rocha. Em mim, de certa forma faltava a prova final de que não se tratava de mais um talento efêmero.
Foi a primeira vez que lhe vi em carne e osso. A figura que lembrava o Cebolinha havia desaparecido. Cabelos ponderados, óculos que protegiam os olhos tristes da fita e eis que a prova final ele apresentaria ali, no aconchegante teatro Nazaré Fiquene, de supetão. O que era aquilo? Que diabos de cantoria era aquela? Era “Porque você não vem morar comigo”, a mais bela declaração de amor versada em canto. Fiquei catatônico! Só os ouvidos funcionavam, não via nada, não sentia calor nem frio. O corpo era letargia pura! Só os ouvidos funcionavam.
Àquela altura, eu estava, por assim dizer, satisfeito. Daí me aparece ele com Francisco Forró Y Frevo e me joga contra a parede mais uma vez. Com um visual muito distante da última vez que o vi, agora sob uma vasta cabeleira Black Power e um sínico bigode à la Samuel L. Jackson  em Pulp Fiction, é direto e infalível dizendo “Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa...” trazendo em sua companhia, simplesmente Dominguinhos. Hipnotiza seus ouvintes com a levada reggae de “Dentro” e agora, de quebra, em parceria com o vozeirão do Seu Jorge. Isso sem falar da deliciosa “Feriado”.
Na Roma antiga era costume saudar os imperadores com o ‘ave César”. Por justiça poética, o Chico de quem falo é César. Fazendo jus àqueles que merecem o  tratamento de imperador, não por impor poder ou riquezas, mas por enaltecer a bandeira da boa sonoridade e o respeito aos ouvidos mais acurados, saúdo com um ave César, o Chico: ave Chico César!
P.S: Ouça Francisco Forró Y Frevo no volume máximo!
 Ronald Corrêa
(24.11.2009)

Gritos de Silêncio

Ronald Corrêa
A gente passa a vida inteira gastando saliva, vociferando loucamente e aprendendo os mais chatos e inúteis tempos e modos verbais. Então, chega um dia em que, sozinhos, nos sentamos em um final de tarde, sexta-feira, ali, em uma pequena e quente sala e concluímos: precisamos de silêncio.
E isso tudo parece muito estranho, pois o primeiro sinal de vida é o choro: nosso primeiro clamor! No entanto, essa primeira reação se clamor é, e penso clamor ser, é, em verdade, por termos sido tão abruptamente retirado do nosso silêncio soberano. Não é uma ode à vida, mas um lamento pelo desterro.
Engatinhamos, balbuciamos, andamos e pelos caminhos percorridos nos deparamos em frequência cada vez maior com as palavras, com os burburinhos, com os cochichos, com o canto das cidades sempre alto, sempre incompreensível. Mas ainda assim, imersos em toda essa sandice de vozes, concluímos: como é seguro o silêncio que nos protege nos momentos de maior provação.
Lembro do meu primeiro contato com a escola. Findos dos anos 70, no pátio do Jardim de Infância Gatos de Botas eu olhava assustado o corre-corre incessante dos pequenos alunos em um incompreensível frenesi. A cerâmica assustadoramente vermelha que revertia aquele imenso pátio me causava um estranho desconforto. Em um cantinho, eu me resguardava, em um funesto silêncio, olhando a tudo e a todos, qual bicho do mato acuado, pondo a gola da camisa na boca como que, inconscientemente, me auto-amordaçando.
Mas é de nossa natureza fazer uso da palavra: “no início era o verbo”. E é o dia o berço do barulho, que por sua vez, é filho do sol. Muito cedo, quando os primeiros raios solares violentam a paz da madrugada, nasce com toda força o grito. O sol queima e suas chamas impõem dor. Na dor morre o silêncio e tudo passa a ser som. Babel é a expressão maior do dia.
Por isso quando a noite lança seu manto sobre o dia a paz ressuscita. E não é por menos que o corpo pede descanso: a alma grita por silêncio. Nunca somos tão verdadeiros como quando deixamos o silêncio imperar, quando tudo o que temos é um grande vazio. Despido de tudo e inebriados pela fragrância do mais lúgubre silêncio restabelecemos o elo, há muito perdido, com a única e verdadeira paz: a do ventre.
É loucura, eu sei, assim pensar. Na verdade, o que fazemos durante toda nossa existência não é procurar respostas e sim, fugir das perguntas. Fugimos porque é insuportavelmente difícil ouvir o silêncio que nos faz únicos. E assim nos abraçamos ao excesso de palavras para não termos o desgosto de nos conhecer. Falando, em tudo pensamos e de nós esquecemos. Contudo, do silêncio vimos, paro silêncio voltaremos, e eternamente, silêncio seremos.

09.10.2009