Ronald Corrêa
Não deixa de ser um processo ritualístico e, embora eu
esteja mais para um cínico cético e cada vez mais distante do misticismo, é
também um momento em que uma certa dose de mágica parece fluir. Tudo começa com
o cauteloso contato com a superfície negra, delicada, viscosa, valiosa, do
vinil que, ao ser retirado da capa que lhe protege, me faz vir a cabeça a
imagem de um sol desvirginando a madrugada. Ali, sedentas de voz, escondem-se trilhas
finas sobre as quais deito com extremo cuidado o braço do tocadisco.
De imediato começam a pipocar pequenos estalos, sinais do
tempo, um ruído que parece chamar a atenção dos meus ouvidos para que não percam
momento algum da audição que está por começar. Já iniciado o movimento giratório, com certa dificuldade ainda consigo ler, escrito em letras cor de prata que
contrastam com o fundo azul marinho, o ano de 1978, que deixa patente a força e
a atualidade das palavras ali gravadas e que lentamente começam a emanar tal
qual um canto de sereia irresistível. Sereia Bethânia que com sua voz, misto de doçura
e dureza, embala sonhos meus. Logo de início ela me mostra a boca molhada e
ainda marcada pelo mais famoso ato de negação depois do de Pedro: “negue o seu amor, seu carinho, diga que você já me esqueceu...”
Roda o disco, roda viva, roda cheia de vida, qual nas calhas
de roda que gira a entreter o coração, como sabiamente dizia Pessoa, seguem a
criar vida os versos. As palavras já não mais pertencem àquela negra superfície,
se transformam em seres com vida e vontade próprias. Inebriam pensamentos,
distorcem as ideias, confundem, mexem, causam mal estar e depois se acomodam
como se inocentes fossem.
O ritmo cadenciado e calmo, aos poucos ganha contornos
diferentes e uma agressividade doce e sufocante, sem que de imediato se faça
perceber, vai ganhando corpo à proporção que a agulha se aproxima
do centro do disco, como que uma mão que se aproxima do peito para sentir o seu pulsar mais intenso. E
o que era a mansidão de ‘ronda’ cede lugar ao desespero visceral de ‘explode
coração’.
Que experiência fantástica essa que é a música capaz de nos
oferecer. Maria Bethânia, como poucas, consegue causar essa sensação de
instabilidade, dizendo ora “pai afasta de mim esse cálice” como que pedindo
clemência e paz, para em seguida afirmar que quer “sentir a dor dessa manhã
nascendo, rompendo, rasgando tomando meu corpo” num rasgo de insensatez que só
a mais desvairada paixão é capaz de proporcionar.
Percebo então que o disco termina e de forma saudosista o
movimento vai cessando lentamente, como uma chama que é obrigada a apagar
independente de sua vontade; como o sono que insiste em me assaltar por mais
que eu tente resistir. Refém dele, me resta um tênue lapso de força que ainda
me permite puxar a tomada e desligar o som. Com os olhos a se cerrar vendo o
esvair-se da noite pela janela, Bethânia mais uma vez canta baixinho nos meus
ouvidos: “no meu céu a estrela guia se perdeu, a madrugada fria só me traz
melancolia, sonho meu...” Durmo.
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