segunda-feira, 28 de maio de 2012

Dissecando Bethânia


                                                                                         Ronald Corrêa


Não deixa de ser um processo ritualístico e, embora eu esteja mais para um cínico cético e cada vez mais distante do misticismo, é também um momento em que uma certa dose de mágica parece fluir. Tudo começa com o cauteloso contato com a superfície negra, delicada, viscosa, valiosa, do vinil que, ao ser retirado da capa que lhe protege, me faz vir a cabeça a imagem de um sol desvirginando a madrugada. Ali, sedentas de voz, escondem-se trilhas finas sobre as quais deito com extremo cuidado o braço do tocadisco.

De imediato começam a pipocar pequenos estalos, sinais do tempo, um ruído que parece chamar a atenção dos meus ouvidos para que não percam momento algum da audição que está por começar. Já iniciado o movimento giratório, com certa dificuldade ainda consigo ler, escrito em letras cor de prata que contrastam com o fundo azul marinho, o ano de 1978, que deixa patente a força e a atualidade das palavras ali gravadas e que lentamente começam a emanar tal qual um canto de sereia irresistível. Sereia Bethânia que com sua voz, misto de doçura e dureza, embala sonhos meus. Logo de início ela me mostra a boca molhada e ainda marcada pelo mais famoso ato de negação depois do de Pedro: “negue o seu amor, seu carinho, diga que você já me esqueceu...”

Roda o disco, roda viva, roda cheia de vida, qual nas calhas de roda que gira a entreter o coração, como sabiamente dizia Pessoa, seguem a criar vida os versos. As palavras já não mais pertencem àquela negra superfície, se transformam em seres com vida e vontade próprias. Inebriam pensamentos, distorcem as ideias, confundem, mexem, causam mal estar e depois se acomodam como se inocentes fossem.

O ritmo cadenciado e calmo, aos poucos ganha contornos diferentes e uma agressividade doce e sufocante, sem que de imediato se faça perceber, vai ganhando corpo à proporção que a agulha se aproxima do centro do disco, como que uma mão que se aproxima do peito para sentir o seu pulsar mais intenso. E o que era a mansidão de ‘ronda’ cede lugar ao desespero visceral de ‘explode coração’.

Que experiência fantástica essa que é a música capaz de nos oferecer. Maria Bethânia, como poucas, consegue causar essa sensação de instabilidade, dizendo ora “pai afasta de mim esse cálice” como que pedindo clemência e paz, para em seguida afirmar que quer “sentir a dor dessa manhã nascendo, rompendo, rasgando tomando meu corpo” num rasgo de insensatez que só a mais desvairada paixão é capaz de proporcionar.

Percebo então que o disco termina e de forma saudosista o movimento vai cessando lentamente, como uma chama que é obrigada a apagar independente de sua vontade; como o sono que insiste em me assaltar por mais que eu tente resistir. Refém dele, me resta um tênue lapso de força que ainda me permite puxar a tomada e desligar o som. Com os olhos a se cerrar vendo o esvair-se da noite pela janela, Bethânia mais uma vez canta baixinho nos meus ouvidos: “no meu céu a estrela guia se perdeu, a madrugada fria só me traz melancolia, sonho meu...” Durmo.


                                                                                           29.05.2012

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