Faz bem pouco tempo, escrevi um texto chamado “Educação sem cedilha”, onde manifestei minha desolação com os rumos que nossa tão aviltada educação vem tomando. Para minha grata satisfação, fui presenteado com uma excelente edição da revista semanal Veja que trouxe algumas duras e inquestionáveis verdades sobre o ensino, as escolas e o tratamento que os pais dispensam à educação que é oferecida aos seus filhos.
A matéria, baseada em recente pesquisa, certamente deve ter mexido com os brios ideológicos de muitos bolcheviques que transformam o espaço pedagógico em palanques panfletário. Isto porque, como deixa claro a reportagem, grande parte do corpo docente, como forma de compensar suas debilidades profissionais, limitam-se à pregação doutrinária dos seus mártires ideológicos, esvaziando a incumbência precípua que lhes é atribuída, qual seja, ensinar a ler, a escrever e a ministrar os conteúdos que são inerentes à sua área.
Diga-se de passagem, que a revista comete alguns excessos, porém nada que macule a essência da mensagem. Uma delas é a de taxar Paulo Freire de leitura que já não satisfaz o espaço-tempo em que vivemos. Pela pesquisa, Freire é disparado o autor mais lido pelos professores. O que me preocupa é esse “lido”. No trabalho que desempenho junto a coordenadores pedagógicos já pude perceber que nem todos cultivam o hábito da leitura. Dentro do pequeno universo dos que lêem, uma boa parte tem como referenciais, os livros de auto-ajuda, livros fáceis e que pouco agregam conteúdos profícuos aos seus leitores. Autonomia de leitor, de debruçar-se em uma livraria, procurando obras e autores de verdadeira qualidade literária, é algo ainda raro de se ver. Daí me preocupa a expressão “a maioria dos professores entrevistados lêem Paulo Freire”.
Talvez se isto fosse verdade, outra seria nossa situação. Lembro-me que em 1994, em uma palestra para divulgar o seu livro Pedagogia da Esperança, Paulo Freire esteve aqui em São Luis e duas colocações sua ressoam muito vividas em meus pensamentos. A primeira foi na verdade uma espécie de desabafo. Paulo dizia que muitos dos participantes lhe reclamavam sobre o valor da inscrição do evento, ao que ele respondia: “nenhuma instituição pública me convidou para ir visitá-los”. O evento naquela época fora organizado por uma empresa particular. A segunda e mais fecunda colocação dizia respeito à tão esbravejada “educação como ferramenta de mudança da realidade”. Paulo disse que nos tempos de repressão ditatorial, nas reuniões dos “subversivos” se pregava a necessidade da revolução primeiro e a educação depois. Com a sagacidade que lhe era peculiar Paulo afirmava que mudar a realidade e manter o povo analfabeto é não mudar nada, e que não havia revolução maior do que ensinar a todos os sagrados direitos do ler e escrever.
O problema é que nossos professores e nossas escolas acham que tudo é importante: formar cidadãos autônomos, críticos, inculcar valores políticos, falar sobre drogas, olimpíadas, sexualidade, bullying, (sempre existiu e agora está na moda) violência... Tudo é importante menos um pequeno detalhe: ensinar a ler e escrever!
É perfeitamente possível formar cidadão críticos, embora analfabetos; formar homens e mulheres autônomos é fácil, mesmo que não saibam ler ou escrever.
Perturba-me muito esse tipo de idéia tão amplamente difundida de que cabe à escola resolver todos os problemas de seus alunos. A escola pensa poder resolver problemas de saúde, problemas de convivência familiar, problemas de envolvimento do aluno com práticas ilícitas etc. Tudo isso é acrescido do discurso de a escola redentora de todas as mazelas sociais, a escola que vai transformar a vida de todos, que vai libertar os oprimidos. Uma pequena pergunta digressiva: libertar os oprimidos é transformá-los em opressores?
Fruto de uma academia anacrônica, ainda fincada em uma forma de ver o mundo do final do século retrasado, o aluno universitário sofre uma espécie de doutrinação política, em geral, marxista, por parte do professorado. Prova disso é proceder um simples levantamento das obras tidas como obrigatórias nos nossos cursos de licenciatura: continuam tendo como dogmas os mesmos autores de décadas atrás. Para se ter uma idéia, enquanto em alguns centros acadêmicos autores como Derrida, que em sua obra falava da desconstrução de Marx, já está sendo superado, nós continuamos idolatrnando o barbudo parceiro de Engels.
Some-se a isso que somos treinados a ler somente textos pragmáticos, aqueles que são necessário simplesmente para a formação profissional. É preciso lembrar que não somos apenas professores, coordenadores, gestores, advogados, engenheiros, médicos... somos antes de tudo seres humanos. Ler apenas textos de cunho técnico-profissional é atrofiar todo o resto do iceberg humano que fica escondido sob a carcaça do profissional.
Aos professores e àqueles que diretamente lidam com educação, é mais do que obrigatório cultivar o hábito de boas leituras, não só as técnicas, mas a literatura que fascina e verdadeiramente nos conduz ao prazer e deleite que só ela pode nos proporcionar. Ninguém fomente em outro o prazer da leitura sugerindo-o que leia artigos científicos, teses, ou enciclopédias de determinado ramo da ciência. Não, o prazer da leitura inicia com o contato com o riso, com o susto, com as lágrimas que só as crônicas, os contos, o romance, as novelas e a poesia nos é capaz de oferecer.
Que fique claro que não se trata de desvalorizar a leitura de cunho cientifico, que cumpre seu importante papel. Trata-se, porém, de valorizar a leitura pelo simples prazer, pela simples necessidade de conhecer aquilo que a literatura universal nos legou de melhor sobre o gênero humano.
Assim, é preciso menos doutrinação política nas salas de aula e mais entusiasmo pela descoberta e apropriação do hábito de ler bons textos. Quem sabe assim, um dia teremos cidadão críticos, autônomos, conscientes de seu papel na sociedade, livres do bullying e com aquilo que lhes é essencial: saber ler e escrever... de verdade.
Ronald Corrêa
(26.02.2011)