domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ensinar o que mesmo?

Faz bem pouco tempo, escrevi um texto chamado “Educação sem cedilha”, onde manifestei minha desolação com os rumos que nossa tão aviltada educação vem tomando. Para minha grata satisfação, fui presenteado com uma excelente edição da revista semanal Veja que trouxe algumas duras e inquestionáveis verdades sobre o ensino, as escolas e o tratamento que os pais dispensam à educação que é oferecida aos seus filhos.
A matéria, baseada em recente pesquisa, certamente deve ter mexido com os brios ideológicos de muitos bolcheviques que transformam o espaço pedagógico em palanques panfletário. Isto porque, como deixa claro a reportagem, grande parte do corpo docente, como forma de compensar suas debilidades profissionais, limitam-se à pregação doutrinária dos seus mártires ideológicos, esvaziando a incumbência precípua que lhes é atribuída, qual seja, ensinar a ler, a escrever e a ministrar os conteúdos que são inerentes à sua área.
Diga-se de passagem, que a revista comete alguns excessos, porém nada que macule a essência da mensagem. Uma delas é a de taxar Paulo Freire de leitura que já não satisfaz o espaço-tempo em que vivemos. Pela pesquisa, Freire é disparado o autor mais lido pelos professores. O que me preocupa é esse “lido”. No trabalho que desempenho junto a coordenadores pedagógicos já pude perceber que nem todos cultivam o hábito da leitura. Dentro do pequeno universo dos que lêem, uma boa parte tem como referenciais, os livros de auto-ajuda, livros fáceis e que pouco agregam conteúdos profícuos aos seus leitores. Autonomia de leitor, de debruçar-se em uma livraria, procurando obras e autores de verdadeira qualidade literária, é algo ainda raro de se ver. Daí me preocupa a expressão “a maioria dos professores entrevistados lêem Paulo Freire”.
Talvez se isto fosse verdade, outra seria nossa situação. Lembro-me que em 1994, em uma palestra para divulgar o seu livro Pedagogia da Esperança, Paulo Freire esteve aqui em São Luis e duas colocações sua ressoam muito vividas em meus pensamentos. A primeira foi na verdade uma espécie de desabafo. Paulo dizia que muitos dos participantes lhe reclamavam sobre o valor da inscrição do evento, ao que ele respondia: “nenhuma instituição pública me convidou para ir visitá-los”. O evento naquela época fora organizado por uma empresa particular. A segunda e mais fecunda colocação dizia respeito à tão esbravejada “educação como ferramenta de mudança da realidade”. Paulo disse que nos tempos de repressão ditatorial, nas reuniões dos “subversivos” se pregava a necessidade da revolução primeiro e a educação depois. Com a sagacidade que lhe era peculiar Paulo afirmava que mudar a realidade e manter o povo analfabeto é não mudar nada, e que não havia revolução maior do que ensinar a todos os sagrados direitos do ler e escrever.
O problema é que nossos professores e nossas escolas acham que tudo é importante: formar cidadãos autônomos, críticos, inculcar valores políticos, falar sobre drogas, olimpíadas, sexualidade, bullying, (sempre existiu e agora está na moda) violência... Tudo é importante menos um pequeno detalhe: ensinar a ler e escrever!
É perfeitamente possível formar cidadão críticos, embora analfabetos; formar homens e mulheres autônomos é fácil, mesmo que não saibam ler ou escrever.
Perturba-me muito esse tipo de idéia tão amplamente difundida de que cabe à escola resolver todos os problemas de seus alunos. A escola pensa poder resolver problemas de saúde, problemas de convivência familiar, problemas de envolvimento do aluno com práticas ilícitas etc. Tudo isso é acrescido do discurso de a escola redentora de todas as mazelas sociais, a escola que vai transformar a vida de todos, que vai libertar os oprimidos. Uma pequena pergunta digressiva: libertar os oprimidos é transformá-los em opressores?
Fruto de uma academia anacrônica, ainda fincada em uma forma de ver o mundo do final do século retrasado, o aluno universitário sofre uma espécie de doutrinação política, em geral, marxista, por parte do professorado. Prova disso é proceder um simples levantamento das obras tidas como obrigatórias nos nossos cursos de licenciatura: continuam tendo como dogmas os mesmos autores de décadas atrás. Para se ter uma idéia,  enquanto em alguns centros acadêmicos autores como Derrida, que em sua obra falava da desconstrução de Marx, já está sendo superado, nós continuamos  idolatrnando o barbudo parceiro de Engels.
Some-se a isso que somos treinados a ler somente textos pragmáticos, aqueles que são necessário simplesmente para a formação profissional. É preciso lembrar que não somos apenas professores, coordenadores, gestores, advogados, engenheiros, médicos... somos antes de tudo seres humanos. Ler apenas textos de cunho técnico-profissional é atrofiar todo o resto do iceberg humano que fica escondido sob a carcaça do profissional.
Aos professores e àqueles que diretamente lidam com educação, é mais do que obrigatório cultivar o hábito de boas leituras, não só as técnicas, mas a literatura que fascina e verdadeiramente nos conduz ao prazer e deleite que só ela pode nos proporcionar. Ninguém fomente em outro o prazer da leitura sugerindo-o que leia artigos científicos, teses, ou enciclopédias de determinado ramo da ciência. Não, o prazer da leitura inicia com o contato com o riso, com o susto, com as lágrimas que só as crônicas, os contos, o romance, as novelas e a poesia nos é capaz de oferecer.
Que fique claro que não se trata de desvalorizar a leitura de cunho cientifico, que cumpre seu importante papel. Trata-se, porém, de valorizar a leitura pelo simples prazer, pela simples necessidade de conhecer aquilo que a literatura universal nos legou de melhor sobre o gênero humano.
Assim, é preciso menos doutrinação política nas salas de aula e mais entusiasmo pela descoberta e apropriação do hábito de ler bons textos. Quem sabe assim, um dia teremos cidadão críticos, autônomos, conscientes de seu papel na sociedade, livres do bullying e com aquilo que lhes é essencial: saber ler e escrever... de verdade.

Ronald Corrêa
     (26.02.2011)

sábado, 26 de fevereiro de 2011

" O BBB também é educação..."

A frase acima foi dita pelo Pedro Bial. E as aspas, mas do que cumprir o desiderato de reservá-la ao seu devido dono, tem o condão de lhe aprisionar, não dando margens para que ande livremente por ai. Fico me perguntado onde reside a tal índole, digamos, pedagógica, dessa coisa que invade os lares brasileiros e elevam à estratosfera os índices de audiência.
Os habitantes daquela caixinha de Skinner pós-moderna são constantemente chamados de jogadores. Que coisa mais sinistra! Que vitupério! Jogos, independente de sua vertente, tem alguns princípios e, dentre eles,  o respeito ao adversário e o "fair play" ou jogo limpo. O BBB, é o extremo oposto disso: intrigas, baixarias, picuinhas, disputas desleais, falsidades, bebedeiras, traições, vínculos vergonhosamente pautados em interesses egoístas.
De certo que nossa educação é notoriamente capenga, precisando de urgentes consertos. É certo também que assistimos a uma violenta degeneração dos nosso valores e da nossa moral. Mas daí afirmar que o BBB é também educação, paciência!
Não são os ensinamentos de um Big Brother o que imagino que boa parte dos pais desejariam para seus filhos.
Ivan Ilich escreveu há tempos um livro em que propunha o fim da escola. A idéia era que seria necessário partir do zero para recuperar a instituição e a educação por ela oferecida. Como seria bom um Ilich hoje em tempos que até o "BBB também é educação"



Ronald Corrêa
(26.02.2011)

Rousseau e os Quebramolas

Rousseau tinha uma vontade muito mais que uma teoria: ver a tão sonhada democracia direta, ou seja, o povo no poder, se tornar realidade. Pena não ter vivido o loquaz genebrino nos nossos dias aqui no Maranhão. Aqui sim, vivemos a democracia plena. Nada da democracia representativa que se espalhou pelos mais recônditos rincões do globo. Não, nada disso! No Maranhão é o povo que manda! Chegamos ao paradoxo de transformar democracia em tirania. E o símbolo maior dessa realidade são os quebra-molas. Calma, eu explico.
Quem se desloca de São Luis com destino às cidades da região do Munim se depara com uma quantidade exorbitante de quebra-molas. Começando ainda dentro da ilha, poucos quilômetros depois da entrada do Maracanã, seguindo pela BR 135 na altura do município de Bacabeiras, na entrada da cidade de Rosário e, sobretudo, no trecho entre a saída deste município e a cidade de Morros. Já pensei em sugerir que nossos geógrafos denominem a região Munim de “região do quebra-molas”. Alguns deles com altura de meter medo em alpinista.
O surgimento desses quebra-molas, em geral, obedecem a uma certa lógica de fatos. Primeiro vem o acidente: alguém é atropelado, uma galinha ou um cachorro de estimação é morto por um veículo. Em seguida o parente da vítima e alguns vizinhos iniciam os serviços de cavar uma vala próximo ao local do acidente. Por segurança e precaução, os moradores cavam logo no mínimo quatro valas, próximo ao local e às suas respectivas casas. Pronto já temos a fecundação do futuro quebra-mola. Após semanas (quando não, meses!), o poder público intervém: tapa a vala e constrói ali um quebramola robusto, maravilhoso, digno se tornar o monumento daquele local. O quebramola ganha tamanha notoriedade que chega mesmo a se transformar em ponto de referencia:
- Sabe onde mora fulano de tal?
- Sim, terceira casa à direita depois do quarto quebra-molas.
Em alguns casos, o surgimento da lombada (nome técnico da monstruosidade) não é tão simples, chegando mesmo a gerar grandes confusões, com direito a participação da polícia para dar destaque maior ao nascimento do quebramola.
Em todo caso fica uma regra: o homem do povo vai lá, danifica o patrimônio público e o Estado vai e simplesmente aquiesce com tal desrespeito.
Nunca ouvi dizer que alguém foi punido por tais práticas de vandalismo. Em verdade, nunca vi nenhuma ação do Estado no sentido de responsabilizar os criminosos que comentem esses tipos de danos.
Já ouvi sim, vários relatos de pessoas que foram surpreendidas pelos intempestivos obstáculos, tendo como conseqüência imediata, além do susto, pessoas voando dentro dos carros esbarrando no teto. Depois da dor de cabeça e do torce-colo vem a dor no bolso, derivada da manutenção da suspensão automotiva. A despeito dos altos custos que se paga para manter o carro em dias com suas obrigações, o que se recebe de contrapartida do Estado é a conivência deste com práticas de vandalismo que deixam ainda mais decrépitas nossas estradas já deveras sucateadas.
Mas enfim, é o “poder do povo” sendo exercido diretamente por ele. Orgulhemo-nos de viver em um Estado onde o sonho de Rousseau se tornou realidade. E como conselho bom nunca é demais, ao dirigir pelas rodovias da região munim, um remédio para dores lombares no porta-luva é uma boa pedida!

   
Ronald Corrêa
(01.01.2008)

Pilão, Etiquetas, Histórias e Estórias...

No dia 24 de novembro, meu aniversário, ganhei do Dr. Carlos Jorge um pilão. Isso mesmo: um pilão! Instrumento muito comum nos interiores onde são utilizados largamente pelas mulheres para socar e descascar o arroz. O pilão que ganhei, entretanto, é um pouco diferente: “O pilão da madrugada” livro do José Louzeiro baseado em um esplêndido depoimento do Neiva Moreira.
Ontem, 11 de janeiro, o pilão me teve grande utilidade. Não, não o usei para descascar arroz, de forma alguma. Sua serviência foi ser o mote para uma deliciosa conversa ao longo da noite. Estava em companhia de meu pai, do amigo e ex-professor Wilson Campelo e do Dr. Carlos Jorge, advogado e prosador de primeira. Este último, ao me ver chegando com o livro do Neiva, com que houvera me presenteado, perguntou se eu já estava usando o Pilão. Ao que lhe respondi que, com ele, o pilão, eu estava finalmente descobrindo um pouco da recente história do nosso estado. E assim, ao som da sinfonia de grilos, sob o céu prá lá de estrelado - típico da Marçalina, e regado ao tradicional Whisky, fomos resgatando num papo bem descontraído fatos históricos e outros, digamos, ‘estóricos’.
A conversa girava em torno da memória, ou melhor, da falta de memória de nosso povo. Em Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Márquez ilustra em uma linda passagem (uma das minhas preferidas) uma estranha doença que acometeu a população de Macondo e causava insônia em seus moradores. Aos poucos, o excesso de vigília começou a afetar a memória das pessoas chegando ao ponto em que, para não esquecer o nome dos objetos, pessoas e locais, era preciso por etiquetas sobre estes, com seus respectivos nomes. Em nossa afável conversa em torno do pilão, entre uma dose e outra, fomos etiquetando momentos vividos.
Eu reclamava de nossa falta de registros sobre marcos importantes de nossa recente história, e exemplificava dizendo que até então, depois de peregrinar por várias livrarias da cidade, tinha encontrado apenas um livro que tratava sobre a greve da meia-passagem de 1979.
Marco do movimento estudantil maranhense e estopim de uma leva considerável de futuros homens públicos, a greve é tratada com menoscabo em nossas salas de aula.
Professor Wilson me falava que naquela ocasião, havia escapado por pouco de um batalhão inteiro de soldados que vinha em sua direção na Avenida Kennedy, conseguindo refugiar-se a tempo. Já Carlos Jorge dizia não ter tido a mesma sorte.
Integrante do DCE da UFMA, que estava à frente daquela mobilização, ao seguir com um grupo pela Rua da Paz em direção ao Palácio dos Leões com o intento de entregar uma abaixo-assinado que reunia mais de 30.000 assinaturas, Jorge e os demais manifestantes foram surpreendidos por um pelotão de Policiais Militares que literalmente pisoteou a vontade de toda aquela população. E assim vinham à tona diversas estórias que se entremeavam à história que tanto nos é furtadas.
Lembrei de que a greve de 1951, outro marco de nossa história passaria em branco por mim se não fosse as maravilhosas estórias que me são resgatadas pelo meu avô, o Seu Álvaro, homem comum que tem uma memória que me assusta. Sempre que estou a tomar uma cervejinha no comércio do Seu Álvaro, recebo de cortesia além do relato de suas estripulias (imaginem que ele teve a audácia de subir na estátua do Duque de Caxias que fica em frente ao Quartel do Exército e “cavalgar” com o cara!), um bocado de estórias impressionantes que nem sempre figuram nos livros de história. Foi com ele que aprendi um pouco da grande greve de 1951. Wilson Campelo, bem mais velho do que eu, disse ali, depois de uma pomposa dose de whisky, que nunca houvera antes sabido nada sobre tal greve.
É triste, mas é fato, que nossa tradição de registro escrito corre a léguas da rica tradição de oralidade que temos. De boca em boca ouvimos e conhecemos muito sobre fatos importantes, mas como dizia Machado de Assis, “a nossa memória é uma rua escura cheia de becos: não se pode confiar tão somente nela, na memória”.
O Pilão da madrugada é assim uma maravilhosa luz nessa rua escura, uma etiqueta que o jornalista Neiva Moreira põe sobre nossa história e que merece ser lido por todo e qualquer cidadão que não quer padecer na tenebrosa noite de insônia que, qual na Macondo do Garcia Márquez, insisti em fazermos esquecer ou simplesmente desconhecer a riqueza das pessoas, dos objetos e locais do nosso Maranhão. Vale a pena usar o pilão.

Ronald Corrêa
(12.01.2008)

Loucura, loucura, loucura

Logo agora que já estava me dando por satisfeito de que um pouco de loucura faz bem e é até necessária, minhas idéias voltam a se embananar. Tudo por conta de um pré-requisito pedido pelo Estado para o ingresso no serviço público: um tal atestado de sanidade mental. Veja lá que doideira: o cara é aprovado em um concurso, é chamado depois de mais de 2 anos de espera e tem que provar que é normal! Deve ser coisa de louco mesmo querer entrar para o funcionalismo estatal e se sujeitar a esperar longos 2 anos. Pensando bem eles tem razão em nos pedir o fatídico atestado.
E assim fui eu, em plena sexta-feira, 6 da manhã, a cara ainda meio amassada e o sono ainda incomodando. No carro, para me distraí, ouvia “Ok song” do Orson, mas nada estava ok, é claro. Uma linda manhã começava a despontar ensolarada e eu ali indo pro hospital psiquiátrico! Meu medo maior era não apenas ser reprovado e não receber o atestado de são, mas também de ter que ficar logo por lá mesmo em uma espécie estágio probatório.
Já nas dependências do hospital, sou encaminhado a uma quadra de esporte em que uma pequena arquibancada servia de sala de espera aos pacientes e impacientes, como eu. De um lado, a fila dos ditos normais que estavam ali a espera simplesmente do atestado, de outro a fila dos menos normais que procuravam ajuda médica. Ao meu lado uma garota, meio assustada, que volta e meia olhava para todos os lados, me pergunta se os internos ficavam trancados em algum lugar longe dali. Respondi que não, que esse tipo de tratamento já havia sido abolido e que os internos vagavam normalmente - se é que se pode dizer assim - pelas dependências do hospital. Daí vejo um rapaz atrás de mim meio sonolento, sendo aos poucos tragado por longas pestanejadas e digo a garota fazendo um leve sinal com a cabeça em direção a ele:
- Olha só como eles até parecem normais!
Ela me olha impassiva, levanta-se e vai sentar-se um pouco mais distante! Será se pensou mesmo que o rapaz era louco? Será que pensa ser a loucura contagiosa? Ou será que pensou que eu é que fosse o louco?
Passadas algumas horas já me sentia meio a vontade ali. Minha preocupação aumentava, porque se sentir à vontade em um hospital psiquiátrico já poderia ser o primeiro indício de loucura.
Aos poucos fui identificando algumas figuras interessantes. De longe, vi um velho senhor, carcomido pelo tempo, com longos e surrados tênis olimpikus, que pareciam ser bem maiores que seus pés. Ele andava por toda a extensão da quadra. Em determinados momentos ele parava, ajoelhava-se e, genuflexo, beijava o chão. Em meus pensamentos mais sórdidos lhe pus a alcunha de João Paulo II. O pior é que minha cabeça já estava tão afetada que juro que ouvia o “a benção João de Deus, a este povo que te abraça...” a toda vez que o pobre senhor repetia o gesto de beijar o chão.
Uma outra interna passava várias vezes pelo grupo que estava ali na arquibancada e acenava, cumprimentando alguns. Ela tinha um sorriso fácil no rosto e um andar aligeirado, como se não pudesse perder tempo ali com aquelas pessoas todas. Era uma espécie de secretária de estado, uma política nata. Daquelas que gosta de mostrar o rosto, de parecer simpática, mas não se demora em delongas e mantém um distanciamento discreto do povo. Acho que votaria nela.
Havia ainda um outro rapaz, aparentando ter menos de 30 anos, com uma bermuda jeans desgastada, sustentada por um pequeno fio de plástico que fazia às vezes do cinto ausente. Ele rondava a quadra esportiva, mas pelo lado de fora, sempre com as mãos voltadas para trás. Olhava atentamente o movimento que se passava ali e parecia conversar consigo. Em determinado momento ele entrou na quadra e pegou o João Paulo II, dizendo que iria levá-lo para fora. A dona secretária foi lá intervir em nome do Papa, ao que o rapaz do cinto de fio de plástico lhe disse:
- Sou o segurança daqui e se a senhora quiser bagunçar vai junto!
A secretaria que de doida não tinha nada, limitou-se a sair discretamente dali, vendo sua santidade o beijoqueiro, sendo levado para fora.
Do meu lado uma senhora, que fez não perceber o acontecimento, me perguntava se eu tinha assistido o Big Brother. Fiquei assustado, pensei lá com meus botões que essa sim deveria ser maluca. Falei que não, que não gostava e que não havia visto nenhuma das edições do programa. Ela me respondia que era muito bom, que eu devia assistir. Perguntei o que tinha de bom num programa como esse.
- Ajuda a passar o tempo, respondeu-me ela depois de uma longa pausa como que procurando uma plausível justificativa.
A secretária que já estava novamente ali cortejando os pacientes e impacientes, ouvia de perto minha conversa com a senhora. Como de doida a secretária decididamente não tinha nada, resolveu entrar na conversa e deu seu palpite.
- Esse big bródi num tem nada que presti moço, mas é bom demais a gente falar da vida dos outros (risos)... (p.s: esquizofrênicos!).
 Foi a conclusão mais perfeita que encontrei para o sucesso do ridículo BBB. Em verdade a doidinha lá estava completa de razão. O povo gosta mesmo é de se preocupar com a vida dos outros. Somos o país das marocas, dos fuxicos, das fofoqueiras. E o BBB é a oportunidade que se tem para, nacionalmente, exercermos nossa índole de palpiteiros sobre a vida dos outros.
Minha preocupação só aumentava. Já tava até achando que a secretária era normal!
Por fim, depois de mais de três horas e meia de espera finalmente fomos atendidos. Já estava quase que dado por satisfeito se não conseguisse o atestado, mas aí veio o mais interessante. Recebi o atestado devidamente preenchido com meu nome, identidade, e nem sequer vi o rosto do médico. Na verdade ele nem lá estava. Quem assinou foi uma funcionária da burocracia que certamente não tinha conhecimento de causa nenhum que desse àquele atestado alguma veracidade. Coisa de louco!
Já na saída, vi com mais calma o atestado, em que dizia que eu havia sido devidamente avaliado naquela Unidade de Saúde e que até o presente momento me encontrava com perfeitas condições de saúde mental. Pairou-me a dúvida. Fez-se uma longa pausa. Olhei para trás, vi ainda ao longe o João Paulo II caminhando lentamente e cabisbaixo, talvez paquerando o próximo pedaço de solo a ser beijado. Em um outro canto estava a secretária que agora fumava um cigarro, absorta a acompanhar o movimento da fumaça.
Meio perturbado com o resultado do atestado segui em frente, liguei o carro, pus o som e novamente escutei “Ok song” do Orson, mas nada, absolutamente nada, estava ok!  
      

Ronald Corrêa
(25.01.2008)