segunda-feira, 16 de maio de 2011

Nós, os cegos do castelo


Quem somos nós? Ao final de Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, essa foi a única pergunta que me fiz. Deixando de lado as suas companheiras, de onde viemos e para onde vamos, me perturbou intransigentemente a indagação sobre as qualidade ou características que nos afirmam como o animal que se destaca de todas as outras espécies existentes.
Saramago é um mestre em mexer com as estruturas consolidadas, transformando o absurdo em palpável, o impensável em preocupante. Assim o fez em Ensaio Sobre a Lucidez, em que um ”corte de energia cívica” levou a maioria dos eleitores de um país a votar em branco; assim também o fez em as Intermitências da Morte, onde em um distante lugar as pessoas acordaram e perceberam que não conseguiam mais morrer. Ensaio Sobre a Lucidez é carregado de sentido político; Intermitências, por sua vez, alia uma situação inusitada com uma boa dose de humor; os dois se afastam necessariamente de Ensaio sobre a cegueira na medida em que este nos leva a fazer a tão temida pergunta que iniciou este texto: o que somos?
No belíssimo filme dirigido por Fernando Meirelles, quando todos perdem a visão, uma nova estratificação social é criada, uma nova rede de interação e dependência, sentimentos adormecidos na caixa de Pandora são despertados e o reino do Id sufoca vorazmente o da racionalidade. As cenas são chocantes, a luta pela sobrevivência, a exploração do homem pelo próprio semelhante, a barbárie e a falência da decência são ingredientes que tornam ainda mais instigante a história. E é nesse cenário bizarro e assustador que o ser humano, até então o ser superior, recrudesce ao nível mais primitivo da cadeia alimentar.
Os arautos pós-modernos, sobretudo Jean-François Lyotard, afirmavam que todos os grandes discursos da modernidade haviam ido por água à baixo no século XX: a experiência soviética maculou o marxismo; o nazismo aviltou a liberdade, a igualdade e a fraternidade de uma só vez; a idéia de que os avanços tecnológicos se converteriam em melhorias para toda população global esbarrou na sede do mercado que só a alguns é benévolo. Em certa medida, Ensaio sobre a cegueira é a prova de que a barbárie mora bem mais perto do que imaginamos. E das telas ou das páginas do livro para nossa realidade, a distância é muito curta. Afinal, o que é que vemos todos os dias no nosso fatídico trânsito? Pessoas sobrepujando as normas, desrespeitando ensandecidamente o outro, o sentimento de que ‘meu carro, meu reino’ se sobrepõem a qualquer outro interesse. Quando diante de uma faixa de pedestre, se pensa primeiro em quem dirige, é também conceber o ser humano que precisa atravessá-la como algo em uma escala inferior à da máquina (carro). Vivemos cada um dono de um reino imaginário, cegos pelo egoísmo e pela ânsia de se ganhar tempo para não saber o que fazer com ele.  
  Ademais, nossa cidade inteira padece enferma vitimada pelo abandono do poder público. Há uma cena do filme que foi gravada em São Paulo, na qual foi preciso interditar um trecho da cidade e despejar toneladas de lixo para dá o tom caótico que se esperava. O resultado final em muito se assemelha com a São Luis de todos os buracos, da sujeira por todos os lados.
A reflexão que Ensaio sobre a Cegueira nos direciona remete sobretudo à indagação do ‘o que somos?” não como um ponto final, mas como reticências que conduzam ao “o que queremos ser?”. Barbárie ou civilização? Se optarmos pelo segundo, temos muito trabalho por fazer e definitivamente, não dá para continuar na condição de “cegos do castelo”.
Ronald Corrêa
(16.05.2011)

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