segunda-feira, 16 de maio de 2011

Coquetel molotov linguístico


No Brasil a prática de tortura é considerada crime hediondo. O problema, como tão bem sabemos, é que a lei brasileira é muito tímida quando precisa ser posta em uso. No caso que trato aqui, isso se torna ainda mais complicado. Mas, vamos por partes: primeiro é preciso saber o que é tortura.
Procurei o meu inseparável amigo Aurélio, mas não pude encontrá-lo. Meu senso de organização já não é o mesmo! Isto, entretanto, não foi problema dado que o Houaiss estava ali como quem não queria nada e resolveu quebrar o meu galho. Ao abri-lo, com todo respeito, fui até a página 725 e ali encontrei o verbete procurado: tortura. 1. volta tortuosa; dobra 2. dor violenta infligida a alguém; suplício 3. sofrimento, angústia.
 Sem muitas dobras, podemos dizer que torturar é infligir dor, fazer sofrer. E há tempos venho sendo torturado pelos vícios linguísticos (denominação até pomposa) que reverberam nos meus pobres e combalidos ouvidos.
Volta e meia surge uma destas expressões que rapidamente se propagam, grudam feito carrapato e tem efeitos colaterais deveras prolongado. Não daria para citar todos, por isso vou me ater àqueles que me vêm à lembrança, ou seja, os mais irritantes.
 Se fosse fazer um toplist, com certeza em primeiro lugar estaria ele o 'gerundismo'. É incrível como ele se mantém com tanto vigor. Se pararmos para prestar atenção, logo percebermos que está todo mundo ...ando, ...endo, ...indo, ...ondo ou ...undo alguma coisa. O gerundismo é tão inconveniente que até nos momentos mais íntimos ele aparece:
- Querida, você poderia estar tirando o seu langerie?
- Ah, só depois que você estiver indo apagar a luz...
- Opa! Pois estarei fazendo isso agora mesmo!
Devido a sua grande penetração (não pensem bobagens, por favor), essa praga linguística é a que causa maior dependência e bem pode ser classificada como pandemia, proliferando-se ainda mais rápida que a gripe suína. Infelizmente estamos longe da cura.
Ao lado do gerundismo encontramos o não menos famoso 'enquanto'. Cruz credo, só de pensar nele já doem meus minguados ouvidos. A todo momento nos deparamos com expressões como: eu enquanto  professor, eu enquanto cristão, eu enquanto pessoa... Parece mesmo que uma síndrome de personalidade múltipla contaminou a todos. Como se para ser professor o infeliz deixasse de ser cristão e de ser pessoa... Todo mundo agora se tornou um pouco médium. Mas o pior é que quando o energúmeno usa o enquanto ele o faz com tanto orgulho e com o peito estufado como se em seguida fosse dá o brado “independência enquanto morte!”. E é de matar mesmo.  
Mas o enquanto não anda só. Com ele sempre está o seu amiguinho, igualmente chatinho, 'a nível de'. Este é podre e também perturba bastante. Todavia, neste caso o tratamento é bem mais fácil e pode surtir bons resultados: recomenda-se que os usuários utilizem em nível de e rapidamente o vício poderá ser sanado.
Nas minhas recentes ouvidanças tenho percebido a presença de uma praga relativamente nova que vêm conquistando adeptos com muita intensidade, o 'questão'. Em qualquer conversa que dure mais de 10 minutos sempre entra as famosas “questões”: com relação a questão do tempo...; por uma questão de educação...; isso é uma questão que não pode ser discutida aqui... E por aí vai.  
 Para finalizar, lembrei-me agorinha do grande 'muitas das vezes'. Seria injustiça da minha parte não fazer referência a esta maldita expressão que tanto ofende nossa gramática. Isto por que muitas são as vezes que ouço essa indecência ser pronunciada.
Mas o pior é quando todas elas se juntam numa espécie de coquetel molotov linguístico, pronto para explodir bem perto dos nossos indefesos ouvidos:  
A nível de esclarecimento, deixo claro que eu, enquanto professor, não posso estar permitindo que se propague a questão desses vícios que, muitas das vezes, poderão estar passando despercebidos por quem os utiliza.
         Deveria ter algum modo de se punir os torturadores que sadicamente impõe sofrimento e angústia aos ouvidos inocentes com essas coisas medonhas. A pena para quem comete este tipo de ilícito linguístico deveria ser ler um bom livro a cada 20 dias para melhor usar a língua portuguesa. Pena, se possível, perpétua!

Ronald Corrêa
(25.06.2009)

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