quarta-feira, 4 de maio de 2011

Corrupção X Corrupsomos


Quarta-feira, 9 da manhã, fila do caixa eletrônico no supermercado, calor nauseabundo, eu ali, último da fila, na minha paz inabalável. Bem a frente, travando uma infindável luta com a máquina, um senhor com um pouco mais de quarenta, tenta incansavelmente sacar o seu soldo. Aqui, próximo a mim, uma senhora se aproxima esbaforida perguntando se aquela era a fila para o caixa do Banco do Brasil. Digo que sim e volto à minha tranquilidade inicial.
A fila não era das menores. O senhor lá na frente parecia, enfim, ter vencido o último round da luta e, ao passar por mim, trazia em meio a um sorriso maroto de satisfação, o extrato bancário que, para ele, parecia um merecido troféu.
A senhora atrás devia também está na casa dos quarenta. Impaciente, comentava a cada vez que alguém se punha à frente da máquina e passava ali mais do que cinco minutos:
- Tem gente que pensa que está em casa e que o cash é vídeogame. Esse pessoal não respeita mesmo o tempo e a paciência dos outros, tu não achas?
Sim, era verdade. E ela não estava nem um pouco respeitando a minha paciência que há poucos se esvaia.
Passados alguns longos minutos (que se tornavam mais longos com o as queixas infindáveis da senhora que “me fazia companhia”), chegou a minha vez de finalmente “brincar com o tal vídeogame”. Assim que me aproximo da máquina uma senhora de idade bastante avançada pede para que eu a auxilie assim que terminasse de usar o caixa. Evidentemente que em respeito, peço que a senhora passe a minha frente e faça uso antes de mim. Foi o estopim para o poço de chatice que estava em minha retaguarda voltasse a entoar sua ladainha infindável:
- Esse pessoal não respeita mesmo, só porque é idoso acha que pode entrar a qualquer hora na frente de todos...
A língua da víbora não parava. Eu, do meu lado, fazia questão de ajudar com toda a paciência do mundo àquela senhora simpática que, dos autos de seus mais de 60 anos, com a maior desenvoltura brincava comigo, apontando para minha camisa e dizendo que nosso time, o Flamengo, havia sido roubado na partida contra o Fluminense. Além de simpática, sábia torcedora, a senhora.
Eu pensava que não só o Flamengo havia sido roubado, mas algo maior, algo fundamental, vinha sendo paulatinamente roubado de todos nós, brasileiros.
A atitude daquela senhora que de tudo e de todos reclamava é a atitude de muitos outros que se dizem possuidores de todos os direitos. Naquela situação ela tinha o direito de reclamar, ela tinha o direito de ter uma fila ágil, ela tinha o direito de exigir a não demora dos usuários do caixa eletrônico. Todos os direitos lhe eram devidos.
É pensando assim que se avança um sinal vermelho: estou com pressa, tenho um compromisso impreterível, logo, tenho o direito de avançar o sinal vermelho. É tomando esse raciocínio que age quem se vale da influência pessoal para economizar tempo: conheço fulano em tal repartição, vou falar direto com ele sem precisar entrar em fila, ou, sou filho de fulano, tenho que falar com sicrano agora. É evocando pretensos direitos que ridicularizamos nosso semelhante: tu sabes quem sou eu?  É locupleto de direitos que, ao faltarmos em determinados compromisso, mandamos alguém por nós assinar a lista de participantes...
Os casos são inúmeros. O que me assusta é que, quando boa parte dos que agem assim se deparam com casos do tipo do governador do Distrito Federal, há um estarrecer de moral, uma convulsiva repulsa a tais atos. Parece que corrupção é aquela que se mostra na TV. A nossa, que é isso? Nem corrupção é! É apenas um atalho cívico na efetivação dos “nossos direitos”.
O brasileiro se acostumou com a idéia da lei do menor esforço, do jeitinho para tudo, da exxxperteza (com legítimo chiado carioca), como forma de se dá bem. Quando somos nós que utilizamos esses atalhos, tudo ok, é permitido, até compreensível. Quando o outro faz: putz! Consternação, assombro, espanto e, por fim, revolta.
Lacan dizia que “amamos os outros e suas diferenças, desde que a diferença dos outros seja iguais às nossas”. Morreu Lancan sem ter podido ver um de seus aforismos ser subvertido por nós. Até isso conseguimos!
Quando me vem à cabeça a imagem daquela mulher da fila, super estúpida, tenho a impressão de que, aproveitando a reforma ortográfica, cabe a inserção de mais um verbete: corrupsomos.
Assim fica mais fácil de nos situarmos: corrupção é todo ato ludibrioso e com intento de satisfazer interesses pessoais de forma ilícita que os outros fazem e que nos causam indignação; corrupsomos é quando nós fazemos estes mesmos atos e nos enaltecemos pelo feito.

Ronald Corrêa
(17.12.2009)

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